quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Presépio

Após algumas boas voltas pelo shopping Praia da Costa, em Vila Velha, carregando duas sacolas de presentes, bateu uma insegurança de gestante de primeira viagem e resolvi que era prudente sentar e descansar um pouco. Avistei uma cadeira e lá fui eu. Quando me joguei naquela poltrona me deparei com a exposição do lindo presépio do shopping.
Ele estava escondidinho, relegado ao final do corredor de lojas do terceiro andar, atrás da parede de uma cafeteria. Um lugar bem menos privilegiado que a movimentada praça central daquele centro de compras, onde estava montada uma gigantesca e luminosa árvore de natal, outras instalações natalinas típicas e uma pista de patinação no gelo. Mas acho que o lugar escolhido para acolher o presépio era mesmo condizente com a realidade daquela família, humilde, discreta.
Fiquei ali contemplando aquele tradicional cenário de natal, mas pela primeira vez com olhos diferentes, um olhar de quem carrega no ventre uma nova vida. Pela primeira vez via a figura de Maria com um entendimento maior, eu também estava perto de ser mãe!
O presépio representa o nascimento, um momento tão importante na vida de uma família, imagine da Sagrada Família! Eles estavam ali diante da manjedoura não só admirando o filho recém nascido, mas simplesmente o redentor do mundo, o messias!
Presépios me fascinam, desde criança, talvez seja coisa de herança, já que sou sobrinha-neta de Sebastião Teixeira de Assunção e Ivo Teixeira, os irmãos Teixeira, que confeccionaram o antigo Presépio da Muxinga.

Como é hoje passear pelo Largo de São Francisco iluminado, era uma tradição da cidade no mês de dezembro, visitar o presépio da Muxinga com suas dezenas de pequenos personagens em movimento. Os mais antigos devem lembrar-se da grande fila que se formava na rua Maestro Batista Lopes, onde moravam meus tios. A lembrança que tenho já é da exposição do presépio na avenida, ia sempre com meus pais, e recordo do meu tio sentado num banquinho e do seu orgulho quando via os parentes prestigiando. Inesquecível o instante encantado quando se colocava uma moeda na urna e os sininhos do presépio dobravam, as luzinhas se acendiam, a porta da igrejinha se abria e aparecia o menino Jesus!
Fora da época do natal, o presépio ficava guardado no velho sobrado da Muxinga, coberto por um lençol branco, e era debaixo dele o meu esconderijo preferido na brincadeira de esconde-esconde com a prima Viviane. Ah, posso sentir o cheiro da madeira, o sol passando por entre as gretas e em meio a toda aquela engenhoca de fios e pauzinhos. Pronto, contei meu segredo, mas infelizmente o tio não está mais entre nós, e não poderá se zangar comigo.
Outro presépio que lembro com carinho era da casa da minha bisavó, do meu também tio-avô, Elpídio. Ele plantava arroz em potes de margarina para colocar entre as figuras coloridas do presépio, eu achava aquele verdinho lindo e que tornava o cenário mais real! Lembro ainda do presépio do vizinho, o maestro Pedro de Souza, era um presépio grande, rico de detalhes e que mais me impressionava era o lago feito de espelho, com areia branca em volta e cheio de patinhos. Mas o presépio do meu coração só poderia ser mesmo o presépio da minha casa, que meu pai guardava com tanto zelo. Cada peça era embrulhada em não sei quantas folhas de papel para que não quebrasse nada. O menino Jesus só era colocado na véspera de natal, depois da meia-noite, num ritual de fé, em que meu pai levava a imagem para que todos beijassem, rezassem, e só depois tomar o lugar junto à Maria e José.
Se você sair por aí hoje e encontrar mais árvores e papai Noel do que presépios, monte a cena do nascimento de Jesus na sua mente e reflita sobre o verdadeiro protagonista de toda esta loucura que é dezembro, com suas compras, estresses, festas, confraternizações, abraços, família e troca de presentes. Ou recorde da sua infância, da fila do presépio da Muxinga ou de qualquer outro lugar que só as lembranças mais doces de natal podem proporcionar.
E então me diga, qual é o presépio do seu coração? Aonde anda guardado o seu Menino Jesus?
FELIZ NATAL aos amigos do ‘Ambição Literária’!

Foto: Presépio da Muxinga por Claudio Marcio Lopes. O presépio teve o início de sua confecção em 1929 e passou por algumas pequenas mudanças e reformas ao longo dos anos. Em 2001 ganhou o segundo lugar do concurso “Natal de Luz nas Gerais – Presépios de Minas”, realizado pela CEMIG. Hoje não tenho a informação se o presépio ainda tem condições para exposição.
Fonte de consulta: São João del Rei Transparente

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Cronista



Ah, eu sou não poeta
Quem me dera ser poeta e poetar
Falar e não dizer
Palavrear com encantamento um pensamento

Não sou poeta
poeta é Pessoa, Drummond e José Antônio
eu falo de afetos sem calor ou sabor e cor
poeta é Vinícius, Quintana, Elisa Lucinda e Adélia Prado

Eu não sou poeta não
Sou errante e dedilho letras com insensatez
Conclamo a dor sem pudor
mas não sofro pra desabafar, e sim pra tudo guardar

Não sou poeta
sou o segredo escondido debaixo do comprido cabelo
sou o sorriso que escapa inteligentemente mentiroso
não recito meus verbos arranjados, nem os aprecio

Não sou poeta
sou a prisão conveniente sem grades rígidas
sou o guardião do meu outro eu vilão
não caminho ligeiro, mas tenho tanta pressa

Não sou poeta
sou a escuridão da noite vestida de branco-lua cheia
sou a caçada encurrala e calada
não sou a sombra, mas sei onde ela cai

Não sou poeta
sou a lágrima que cai sem cerrar os olhos
sou um lamento quase silencioso com som de gargalhada aguda
não sou a solidão, mas ela me conhece bem

Não sou poeta
o que escrevi já perdi
não tem rascunho nem reverso meu verso
sou a menina doce com gosto amargo

Não sou poeta
meu livro é um lírio que não abriu
que exala um perfume forte que às vezes sufoca
sou a fada boa com espada afiada e embainhada

Não sou poeta
nem flor, nem beija-flor
mas aprendi brincar de lirismo num liceu antigo
sou um resto de sonho ansioso e morno

Não sou poeta
é acanhado meu vocabulário
minha rima miúda mendiga pela rua
sou a força de um monossílabo profanado na fraqueza da alma

Não sou poeta
não sei desejar puramente como tal
descrevo com adjetivos os rancores e carrego um baú de troços
sou um despertador de manhã anunciando um novo amor, mas volto a dormir

Não sou poeta
confronto a palavra aniversariante e agonizante
não danço no ritmo e improviso a canção no refrão
não sei conter a empolgada vida que brota, disfarço com brandas rotinas

Não sou poeta
nem água da chuva ou fonte
escrevo um rio que deságua no seu mar
não sou a saudade, mas ela é uma amiga

Não ouso ser poeta
sou indiferente com frases tolas e teimosas reticências
sou o querer versus poder igual a delírio
Eu não sou poeta, mas queria tanto

Não sei manter a espinha ereta
por isso não sou poeta
mas minha janela está aberta
e eu vejo tudo, sinto tudo, quieta...

Foto: Drummond e eu, Copacabana, dezembro de 2008

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

'Twitando'...

É tarde e a vida é cedo. O tempo te assalta, te leva tudo e você mudo!
@KKfreitas

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Bispo, titã, ovelha negra e camaleoa

Julho deste ano, sexta-feira.
Um vento calmo e devoto acompanhou o cortejo de Nossa Senhora do Carmo pelas ruas. E no céu se desenhou fogos, se fez cachoeira de pétalas de rosas nas janelas coloniais e uma bela chuva de papel picado platinado brilhou no largo.
Já o sábado amanheceu nublado, mas foi encorajado, animado e ritmado com tambores de congo, bandas, fanfarras e baterias de escolas de samba. Estava assim inaugurado o 23º Inverno Cultural com o tema ‘Paisagens Sonoras – ouvir, ver, sentir’.
No meio da tarde o frio se agigantou, mas não desanimou as centenas de fiéis que tomaram as escadarias da igreja das Mercês para assistir a posse do novo Bispo. Viu-se tapete vermelho, a imagem de Cristo Crucificado e mais de 250 padres. Ouviram-se os cânticos da cerimônia e dobres diferenciados nos sinos. Mais uma vez o vento, desta vez feroz, se encarregou de alongar tais paisagens sonoras.
Quando a noite caiu impiedosa, uma roqueira ovelha negra de família cantou o amor pop e outras coisas da vida na avenida. A multidão agora era outra e aplaudiu a Rita quando ela musicou a cidade com elogios graciosos. A paisagem que ela avistava do alto do palco era a imponente ponte de pedra iluminada, as duas ruas que ladeiam a margem gramada do córrego, totalmente tomadas pelos fãs, castanheiras enfileiradas, e o sereno cobrindo tudo mansamente. Era mesmo um cenário para conceituar de ‘muito bonitinho’. O que a Rita não viu foi a segregação involuntária não-combinada, ou pior, já prescrita no preconceito que cada um leva no peito diante da inclusão social. O Lenheiro de filete d’água foi à muro invisível e quase intransponível.


Em outra semana Arnaldo Antunes vai aportar aqui para o festival. Um artista exótico e talentoso que manipula as palavras do jeito que só se faz quando se conhece profundamente a sutileza da língua. Ele sabe orquestrar adjetivos e cadenciar rimas que culminam num descolado verso. O que ele dirá destas nossas abundantes paisagens sonoras?
O inverno de São João Del Rei assim vai se apresentando, é gelado, humano, cultural, sagrado, profano e nós são-joanenses nos adaptamos feito camaleão e camaleoa, numa boa! Nesta época os filhos caçulas como Rita Lee, talvez também ovelhas negras da família, sempre vão voltar, seja pra terrinha ou de um tombo qualquer. Existirá alguém que muito caminhou, estudou, rezou, pastoreou e tomará posse como novo bispo. Outros simplesmente vão repetir a frase do ex-titã poeta “O desejo é o começo do corpo” significando com causa ou não, o mistério mágico de nos reunirmos aconchegantes em julho.

Foto1:Posse canônica/Diocese de São João del Rei
Foto2:Show Rita Lee/André Fossati
Foto3:Cortejo de abertura do 23ºInverno Cultural da UFSJ/Netun Lima

terça-feira, 29 de junho de 2010

Brasil x Chile


Copa 2010 na África do Sul, oitavas de final. Vinte e três minutos do primeiro tempo, zera a zero.
Tem um tempinho que não escrevo nada, mas se não estou com inspiração não escrevo mesmo. E não é que hoje, dia de jogo, deu vontade de escrever?! Gosto de futebol, adoro Copa, fico nervosa em jogos e não gosto quando se fala de muito favoritismo do Brasil.
Trinta e um minutos, ainda zero a zero. O Falcão está criticando o Ramires, mas eu sou mais o Ramires que o Felipe Melo, que não está jogando por causa de uma torção, ah, não sei detalhes não. O jogo está cheio de faltas.
Tenho boas lembranças de outras Copas, mas as melhores, claro, são do tetra e do penta.
Gooooooooooooooooooooool!!! Adoro o Juan!!!! E eu não vi porque estava digitando. Mas tudo bem, tudo em nome da minha ‘Ambição Literária’.
Goooooooooooooooooooooooool!!! Luiz Fabiano, o Fabuloso!!!
Ai minha Nossa Senhora do Carmo, Sagrada Família do Altar, medo de contra-ataque! Não foi nada. Difícil escrever e torcer, mas vamos lá.
Eu falava das minhas lembranças. Em 94, eu tinha 18 anos, estava em São João Del Rei na final, a turma armando a maior festa pra ver o jogo na casa de uma amiga. Depois de me vestir de verde e amarelo fui despedir rapidinho da minha mãe. Ela iria assistir sozinha e vendo ela ali sentada em frente à TV, doeu o coração, acabei assistindo com ela. A farra com as amigas ficaria pra depois se o Brasil fosse campeão. Sábia decisão, uma das melhores decisões que já tomei e nem precisou pensar muito, o coração ditou e de imediato o cérebro processou com convicção. Não poderia ter melhor fim, eu e minha mãe, abraçadas, chorando numa eufórica felicidade depois que Baggio isolou a bola. Que lindo foi aquilo ao som do hino da vitória de Ayrton Senna. Naquele dia eu não sabia, mas era a nossa última copa, nunca mais tive a companhia dela para torcer. Talvez por isso não lembre do resto, de ter saído, aproveitado com as amigas, ficou para mim apenas o momento especial em que dividi com ela a explosão de gritar e pular o tetra.
Fim do primeiro tempo, 2x0 pro Brasil!!!
Em 2002, foi animada a coisa da Copa. Lembro da sensação aconchegante da reunião de amigos no meu apartamento, a corrente positiva, as brincadeiras, a alegria. A competição foi no Japão e por causa da diferença no fuso horário os jogos, quando não eram de madrugada, eram de manhã cedo. Nas primeiras partidas recordo de como a turma estava bem comportadinha, tomando um belo café da manhã, com chás, chocolate quente, pães, biscoitinhos. Mas a seleção foi pra final contra a Alemanha, e final é final, não teve jeito, só tinha cerveja e assim foi, desde às 7 horas da manhã. O Brasil ganhou e saímos pelas ruas da cidade buzinando, gritando. Eu tinha comprado duas bandeirinhas daquelas que fixam no vidro do carro, mas elas me foram furtadas na véspera, nos restou agitar uma blusa do Cruzeiro (o que estava valendo pois o Cruzeiro tinha perdido o Mundial de Clubes para um time alemão, vingança!). E às 18 horas eu não aguentava mais comemorar, eu não aguentava mais a dor de cabeça, eu não agüentava nada, nada mesmo (risos) e fui dormir imensamente feliz e pentacampeã mundial!
Começa o segundo tempo.
Hoje estou longe dos amigos, tenho como companhia meu cachorro, devidamente ornado com as cores do Brasil e totalmente assustado com os fogos e vuvuzelas dos vizinhos. E tem também meu marido supersticioso e metódico. Ele vê o jogo sempre com a mesma camisa, o laptop no colo para conferir, no site da FIFA, todas as estatísticas referentes à partida e também para estar pronto no caso de dúvidas irrelevantes de uma torcedora feminina.
-O Valdívia não jogava num time brasileiro? Perguntei sobre o jogador chileno que acabava de pegar na bola.
_ Jogava no Palmeiras.
- E onde ele joga agora?
_ Só um momento que já te respondo.
E depois de consultar a internet respondeu como se ele mesmo soubesse a resposta: No Al-Ain dos Emirados Árabes.
Era mesmo uma pergunta irrelevante!
Goooooooooooooooooooooooool!!! Robinho finalmente desencantou nesta Copa!!! Passe de quem? Ramires! Ramires que aprendeu a jogar na Toca da Raposa! Há!
Fim do jogo, vou voltar para os meus afazeres, minhas coisas, minha casa, feliz. O Brasil ganhou e vamos enfrentar a Holanda nas quartas de final, depois vem semifinal, final. Desejo uma comemoração ao lado de pessoas especiais para você e que seja assim memorável como as ótimas lembranças que carrego, afinal seremos... HEXAAAAAAAAAAAA! E crônica em tempos de copa é isso, não está assim com essa jabulani toda não!

Foto: Monti na torcida para acabar logo o jogo, e os fogos, e as vuvuzelas!

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O que se vê, veja bem

- O que? -perguntei, não entendendo patavina o que o senhor que estava sentado do outro lado corredor, estava querendo me dizer ao apontar o teto.
O piloto tinha acabado de anunciar a decolagem e em seguida o chefe de cabine avisou que iriam diminuir as luzes internas.
O senhor apontou o teto de novo, sem dizer nada... Mas desta vez apontou também para a revista que eu segurava.
Fiz de novo aquela cara de perdida, levantando os ombros como se dissesse novamente: “O que?”
O que, meu Deus, o que?
Foi então que a senhora que estava ao lado dele revelou:
- Ele está te aconselhando a ligar a luz de leitura para ler sua revista.
-Ah ta, obrigada – e sorri agradecida, não sei se pelo desfecho do mistério ou pela delicadeza do conselho.
-Mas está bom assim, está dando para ler – concluí.
-Não, liga sim! -Falou finalmente o senhor, incisivo e apontando para o botão no teto.
Eu acabei ligando a luz e a leitura se deu de fato mais facilmente.
-É melhor assim, para não forçar a vista, não é? – sorri novamente.
-Muito bem, parabéns. – ele disse gentilmente.
Ele estava implicitamente me dizendo também: “Ah muito bem, venceu sua teimosia, própria dos jovens que não sabem valorizar os ensinamentos dos mais velhos. Hoje seus olhos estão ótimos, mas nem sempre será assim, porque então forçá-los agora? Pode até ser crendice que ler no escuro pode desgastar a vista, mas se tem uma luz de leitura para ser utilizada, porque não ascender?”
Continuei lendo a matéria da revista à luz da lâmpada de leitura direcionada para minha cadeira, à luz da sabedoria, mas a matéria perdera totalmente a graça, estava mais interessada em divagar sobre o ‘ver bem’.
Você sabe ver a vida da melhor maneira? O que se descortina à frente da janela da sua alma?
Eu confesso que me policio para isso, mas nem sempre as minhas retinas estão limpas, eu arrumo alguma coisa pra embaçá-las ou insisto em ficar no escuro.
Por exemplo, quando nos deparamos com situações complicadas em que entendemos que perdemos algo que nos era muito precioso, nos entregamos ao desespero, ao despedaçar-se aos poucos, aos lamentos internos, à dor. Por teimosia, por inflexibilidade, por não querer ver nada senão aquilo, senão vivenciar a desilusão do que parecia única salvação. Vista turva!
A perda existe de fato, mas toda perda implica em se ganhar algo mesmo que pareça ser uma desconfortável derrota, uma experiência de resignação e até outra possibilidade não imaginada. Como diz o ditado: “Deus não fecha uma porta sem abrir uma janela”. Preste atenção! Pisque seus olhos, esfregue-os se preciso for, estique seu pescoço e veja o que se encontra ao seu redor, é tudo tão ruim assim? Consegue enxergar o que tem dentro de você mesma, sua capacidade de dar a volta por cima, seus talentos, seu sorriso? Mesmo que um pensamento recorrente não se deu como desejava, o que você ainda tem? Está vendo? Sua família maravilhosa e presente, os amigos que te ouvem, outros que confortam e te fazem bem por serem também loucos?! Consegue vislumbrar o leque de outros caminhos que traz o amanhã? Pode não estar ali na sua frente, talvez seja preciso entrever, virar-se para a esquerda, direita, se contorcer e verificar também atrás, abaixar-se, aproximar. Se pode ver, com esforço e criatividade é porque tem boa visão, não vai precisar usar óculos tão cedo.
Viu que simpático o senhor do outro lado do corredor segurando a mão da esposa e preocupando-se com minha leitura no escuro? Mal sabe ele que me fez ver muitas outras coisas pra lá da revista.
Ascenda a luz direcionada especialmente para você! Veja além, melhor e por longo, longo tempo!

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Que bom!



Onde a ‘Tiradentes’, com sopros de liberdade, rasga ‘Gabriel Passos’, jornalista e ministro de Minas e Energia; bem ali, bate o coração de São João Del Rei. Uma mineirinha esquina, onde caberia perfeitamente o nascimento do ‘Clube da Esquina’, porque também ali surgiram tantas outras turmas de amigos, e é onde os sonhos não envelhecem!
Uma quadra mística com filosofia única e vida própria. Nenhum corretor especulou seu valor, ela aconteceu despretensiosa como convém às boas coisas da vida. Numa tarde vestiu seu rótulo, abraçou seus filhos sentados em seus degraus, tornou-se ponto sem pudores, nem becos sem saídas, vinha da ponte ou descia do Bonfim, sentido destino.
Hoje em dia, talvez não se fale mais: “Vamos dar uma volta ali na Kibon?”. Atualmente é a Rua do Shopping, ou simplesmente ‘A Rua’. Mas esta história começa com doce sabor de sorvete, de uma sorveteria, lanchonete do Claudionor, único lugar nos anos 70 onde vendia Kibon.
Não importa como você a chama, é lá até hoje que se desfila o carro novo, a potência do novo som do carro, a namorada nova, se discute política e se abraça um velho amigo. É lá que se conta a última da fulana, o que o sicrano aprontou, e o que o beltrano fez desta vez. A moda passa por aquelas ruas, os costumes, as gírias, as regras, e a quebra delas. Atravessam-se os dias, se vão as tardes movimentadas e barulhentas, caem as noites agitadas, e se estendem as longas e alucinantes madrugadas. Ela vê partirem os anos em alegres réveillons, testemunha as fases da vida, as muitas gerações que caminham agressivas e outrora devagar. Na Kibon passo eu, passa você, passou ela interessada e ele apaixonado, juntos de mãos dadas e agora cada um numa calçada.
Lugar melhor não há para pitar o cigarro, tomar uma gelada ou um estimulante café e tamborilar os dedos na mesa, comer qualquer coisa na pressa, ver o tempo dissipar, brincar com a sorte, no meio-fio se equilibrar.
Eternamente jovem, embora com sabedoria de uma cinquentona, ainda é diversidade. Entende que se fecham Clever’s Bar, a sóbria Confeitaria da Vovó, se abrem Café Del Rei, perde-se Kuka, se encontra num Paiol, ouvindo Mozart cantar no Pizza Mia. Esteve adolescente na Max Burger, Peanut’s, Green’s, pastelaria Ok e hoje tem o Shopping Hills. Moradores vão e vem no Edifício São João, dança-se valsa no Salão dos Espelhos do Minas, janta-se sempre na Cantina do Ítalo. A noite é badalada do Postinho a outras esquinas, passando pelo Canjão que virou Sal e Pimenta e São Jorge, Pub’s, Terraço’s, Fio de Seda, Cantinho da Canja até o Zotti... Bares e boates de uma lista sem fim.
E passam por ela também as procissões já que estamos em terra de sagrado e profano. Em fevereiro parte dali o carnaval com a Bandalheira e terminam ali com outros blocos. Foram tantos pré-carnavais em vermelho e branco, azul e branco, e tantos carnavais, tantas multidões, tantas confusões. Palco pra comemoração dos jogos da Copa, político faz comício, um ou outro protesta na porta da prefeitura, ou se clama por justiça em frente ao fórum. As notícias estão nos postes em jornais provincianos, e também na banca. Se Kibon fosse larga e comprida avenida não seria tão deliciosamente completa, tumultuada e acolhedora!
Ah... alguma coisa acontece no meu coração, mas só quando eu dobro esta esquina, e ouço Jonh Lennon cantar “All you need is Love”.
Encontro que não precisa ser marcado, eu te vejo lá!

Foto: Antigo pôster que ficava em cima do bar da esquina (Kuka). A foto foi tirada do documentário 'Nós éramos assim'

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Alice



Novas versões de clássicos da infância e adolescência nos enchem de expectativas. Isso pode ser um problema...

Escutei e vi prévias na TV falando sobre o fabuloso diretor Tim Burton, de como foi criativa sua versão gótica para o ‘País das Maravilhas’, de como foi audacioso em apresentar uma Alice já adolescente, de como estava fantástica a bilheteria logo na estréia, e criei algumas expectativas. Johnny Depp, no papel de chapeleiro, nos brindaria com mais uma atuação primorosa como em ‘Piratas do Caribe’? Não, por favor, nem pensem nesta comparação! É maldade!

Sem querer cortar o barato da lagarta, sem querer colocar água no chá ou tirar o bolo que faz crescer da boca dos leitores, o filme é muito fraco! Sem graça, sem pulo do gato que sorri e evapora no ar, sem sal. E descobri porque eu não me lembrava desta história assim como de ‘O Mágico de Oz’, por exemplo, e tantos outros filmes memoráveis do gênero. ‘Alice no País das Maravilhas’ não me disse muita coisa na infância e nesta versão disse menos ainda. O que se pode guardar de encantador, de mágico e de feitiço, comum às tramas infantis é o recado de que ter um olhar meio maluco sobre o mundo é essencial.

A Rainha Vermelha é engraçadinha e só.

A Rainha Branca (Anne Hathaway, adoro!) tem um ar meio sonso, mas é adorável. Ela me lembrava alguém quando mexia delicadamente os dedinhos com esmalte ‘Café’ nas unhas e também quando expressava seu nojinho nada majestoso.

Não fique triste se por um acaso você não conseguir assistir a uma sessão em 3D. Não há uma cena se quer que mereça um 3D. A única coisa que eu pensava quando estava usando aqueles óculos era: Porque eu não vi Avatar em 3D??? Ira!

Desculpe decepcioná-los, mas eu fiquei tão decepcionada...
Ficaram com vontade de mandar cortar a minha cabeça, não é? Mas vai ver o filme vai, porque mesmo com tantas críticas negativas você vai pagar, ficar na fila, escolher o melhor lugar, se acabar na pipoca e provavelmente vai concordar comigo. A não ser que exista dentro de você uma Alice muito diferente da minha! Aliás, é isso, cada um tem a imaginação que merece, os sonhos e expectativas que desejar construir e cai na toca sem fundo do coelho, se quiser!

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Eu queria

Eu queria viajar pra Bélgica só para ver o último show da Tina Turner
Queria ter um tucano no quintal e um pé de cambucá
Comer broa de coalhada com queijo sem engordar
Beber algumas taças de champagne e no dia seguinte acordar com sensação de quem tomou uma xícara de chá de capim-limão
Eu queria também falar todas as línguas que julgo belas

Se possível viver mais anos de infância, pular a adolescência e curtir mais a juventude
Ouvir de novo a boa risada da minha bisavó
Ser menino só pra subir na torre e tocar sino
Reviver uma paixão em sua plenitude
Saber

Quem não queria?
Não saber que querer não é poder...

Eu não queria...
Ficar sem trabalhar. Aceitar que todo caráter é construção, tropeço, desalinho e prumo. Desproporção, mas agrado do meu cabelão.
Ser meio atrapalhada para me expressar, mas dirijo bem.
Não sei cantar, mas ainda posso aprender a tocar samba no cavaquinho.
Não sei sambar, mas eu canto feliz no chuveiro!

Quer queira, quer não, amanhã é outro dia.
E eu só queria acordar com outros olhos nesta minha lida linda, nessa aventura biruta de me entender e na busca prolixa de saciar-me.
Quem sabe numa tarde de sol ainda não dou um mergulho no mar do Taiti? E acabe de ler um livro encalhado, realizo um sonho que deixei de lado ou apronto uma encantada reviravolta? Plante uma árvore (pode ser o pé de cambucá), faça alguém sorrir e tenha um filho ou filha.
Ah, quantas ruas, pessoas, semanas, modas, sintomas, sabores amargos ou doces, pos-si-bi-li-da-des o mundo oferece...
Basta querer!
Eu quero!
E você, o que quer?

segunda-feira, 22 de março de 2010

Estação verão


Já vais? Não é muito cedo? Olha que as tardes ainda ardem, com o sol ainda bronzeando, as nuvens brancas ainda refletem tamanha luz e faz franzir as faces. Todos aqueles que trazem a juventude no espírito te saúdam com tanta empolgação, isso não te comove? As andorinhas te festejam todos os dias, se tu partes elas também precisarão buscar novo destino, isso não te sensibiliza? Ah, que pena, tem certeza de que deves mesmo ir? Então deixa pelo menos em nossas lembranças aquela atmosfera luminosa de pôr-do-sol incandescente, aquela brisa refrescante no fim do dia que somente tu sabes soprar. Deixa também uma onda bem surfada, um sorriso de criança a esculpir castelos na areia, um banho fresco de cachoeira, uma lua bem graciosa, uma cerveja tão gelada, uma risada espalhafatosa, uma dança envolvente e também um formoso beijo de casal apaixonado. Mesmo se for para longe não carregues muita bagagem, não viajes pesado não, tu não precisas de muita coisa, só de fazer irradiar sua essência de pulsante estação. Mas... Tens certeza de que não queres inverter a ordem natural das coisas e num surto delirante prolongar sua estada entre nós? Sua companhia é tão agradável, claro que às vezes você exagera, sufoca, faz ferver as horas e com mão pesada carrega as nuvens de chuva, mas é sua característica e nós respeitamos e aceitamos como tu és! Que teu regresso seja breve, nada contra outonos, invernos ou primaveras, mas é que tu me enches mais de vida os pulmões, me marca a pele e me deixa saudades únicas. Te reencontro em dezembro num dia anil como somente tu sabes pintar!

Foto: pôr do sol na cidade de Cartagena-Colômbia

sexta-feira, 19 de março de 2010

Reluz



É verdade, ou pelo menos foi verdade. Aqui era terra rica em ouro. Não é lenda, caminhe pela serra do Lenheiro, você vai ver os veios. As marcas, as pistas da existência outrora deste metal precioso rasgam essa terra e aquelas rochas. Pergunte aos mais antigos, eles vão contar que era comum ver aquela cena no fim do dia: a silhueta dos últimos garimpeiros com os pés dentro do córrego, alheios ao burburinho do centro da cidade, calças erguidas, bateia nas mãos, lavando o fundo do filete d’água com espantosa esperança e olhos de águia. Em outros tempos - quando a vila contava apenas com algumas dezenas de casas - serpenteando as margens dos rios da redondeza chegavam toda sorte de gente, bandeirantes, aventureiros, garimpeiros, estrangeiros, quilombolas, índios, ladrões, gente trabalhadora e sonhadora, motivadas pela riqueza que proporcionaria o primeiro filão de ouro do Brasil. Era fim do século 17, e junto com Goiás e Mato Grosso, estes arredores onde hoje se encontram Tiradentes e São João del Rei responderam por 50% da produção mundial do minério dourado.
Suba o Alto das Mercês, ainda existem as profundas e misteriosas betas, onde escravos trabalharam exaustivamente ao estalar de chicotes, e fizeram emergir ouro e mais ouro. Ouro que virou pó e foi escondido de todo santo jeito até em santas ocas. Ouro nosso que por ordem da coroa fundiu e pesou no quinto, que fomentou os primeiros atos de corrupção e sonegação, que percorreu longo caminho no lombo dos muares, que foi também roubado, contrabandeado, extraviado no alto destas serras e picadas de mata da Estrada Real. Depois o que restou ganhou o mar e aqueles navios que conseguiram escapar dos ataques piratas, levaram nosso ouro a Portugal, que pagou dívida à Inglaterra e assim finalmente decorou famosos palácios de lá e riquíssimas jóias reais. Quem sabe se uma parte da genuína dourada riqueza está mesmo nas nossas igrejas, fazendo brilhar altares na matriz de Santo Antônio em Tiradentes e na matriz de São João? Quem o viu transformar em majestosa coroa que adorna a cabeça da imagem de Nossa Senhora do Pilar? Quem possui uma jóia oriunda deste leito de córrego, de alguns poucos ciscos vislumbrados no fundo da bateia? Para onde foi toda a fortuna da nossa terra?
A verdade é que o recurso natural foi totalmente explorado, se extinguiu, se exauriu, morreu assassinado e absorvido gananciosamente em sua plenitude reluzente, não brota mais, não reaparece, não renasce, não brilha mais no meio da lama. Quem viveu na época da corrida aurífera, se iludiu, se encantou, mas não deixou vestígios em barras de ouro.
Eikes Batistas de antigamente, mas sem nenhuma elegância, desbravaram as montanhas, sangraram as pedras, vasculharam as profundezas dos rios, construíram muitas minas, sugaram o que encontraram e ainda por algum tempo continuaram a sugar sem nada encontrar. A terra não deixou nenhuma jazida pra trás, não há porque abrir um garimpo, se esgotou a fonte.
Ah, quer saber? Ainda bem. Respiremos em paz. A riqueza da minha terra hoje é outra, menos lasciva, é coisa escultural, de arquitetura, de música, religião, política, o são-joanense na sua essência de fé e realização. Ambição pra mim, só literária; fome só aquela de café da tarde com broa; busca desenfreada só por cultura; loucura só por amor; corrida só por exercício do corpo e mente, ali na Leite de Castro; um ambiente social fervilhante, só no carnaval! A herança da época para mim basta em livros de história, nos museus, na lembrança, e porque não com um inofensivo orgulho. A abastança que fez fama no país e lá fora, que financiou as extravagâncias das irmandades religiosas, as orquestras, que construiu com luxo, beiras e eiras esses casarões, que talhou pedra-sabão e vestiu barrocamente estas igrejas, talvez tenha se quietado no tempo certo. Basta hoje contar a fábula já que nem todos têm o dom de desvendar o que numa terra realmente reluz!

Foto: Altar mor da Matriz do Pilar coberto por folhas de ouro. A igreja é a quarta mais rica do país.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O Compositor



O cenário não poderia ser outro, o Largo do Rosário, diante das janelas cerradas e sacadas solitárias do Solar dos Neves. A história é sobre uns versos de 25 anos atrás e o personagem é um senhor discreto em meio à pulsante multidão de foliões do bloco Unidos do Cambalhota. Ele olha de longe para aquela bateria, para os estandartes, para o povo em êxtase, para tudo, anônimo, sem demonstrar muitas expressões em seu rosto. Traja vermelho e branco, as cores do Salgueiro, do Copo Sujo, da Chácara, do seu Cordão Encarnado e do seu Qualquer Nome Serve. São tantos os sábados de carnaval já vividos, aquele teria um gosto especial? O que será que passa na cabeça deste apaixonado pelo carnaval de São João, deste inquieto idealista, deste talentoso compositor que em 1985 criou um samba com cadência mágica de lavar a alma, com um refrão poderoso e contagiante que vem vencendo o tempo na garganta de quem tem gosto pela folia na terrinha. Como ele se sente observando aquela multidão que explode uníssona cantando o que ele compôs, ecoando alegremente no Largo as palavras que um dia ele escreveu e ritmou com maestria? Mesmo nos anos mais difíceis da festa momesca são-joanense este pedaço do samba sobreviveu, ele tem a força da superação. Não existe carnaval em São João Del Rei sem que se ouça, por estas esquinas, em rodas de samba, em quase todos os blocos que se arrastam pelas ruas, este ‘bis’ incansável. Emociona o músico da bateria, faz o puxador impor a voz, faz sorrir quem só assiste, faz balançar quem não sabe sambar.
Que momento de inspiração fantástico teria sido aquele de rimar e enredar aquela emoção do carnaval de 1985, o carnaval da ‘Alvorada’, da Nova República, da democracia consolidada principalmente e com tanto orgulho pelo são-joanense Tancredo Neves? O que aconteceu no nosso país durante estas décadas corresponde à esperança que tomava seu coração, naquele ano após o regime militar? Caro poeta, seja qual for sua resposta lembre que não há nada mais nobre do que semear a fé no amanhã, é isso que todos cantam com tamanho entusiasmo e continuarão cantando através das gerações. Se por ventura tens ainda cárceres e porões ocultos dentro de ti, liberte-se deles, o sol amanhã anunciará um novo dia para o qual eu, e todo este povo transtornado de felicidade, conclamamos você!!!
O bloco vai passando, a multidão continua se agitando eufórica, pulando e batendo palmas, e ele está ali parado, braços cruzados para trás, sozinho, vivendo aquele momento de modo particular. Meu querido carnavalesco, sinta-se agraciado, abençoado, abraçado por esta massa, afinal a festa é sua, hoje e sempre é pra valer, quando chegada a hora, deixa a festa acontecer!!!

Eis a letra do samba do Cordão Encarnado 1985:
‘Alvorada’ (Jota Dangelo)

O sol nasceu,
Já raiou a madrugada
Um novo dia amanheceu
Pintando de luz as cores da alvorada
Canta, voando livre a passarada
Um hino cheio de esperança
Que acorda a criança que existe no fundo
De quem espera que este mundo
Um dia seja mais feliz, feliz...
Quando chegar a paz hoje sonhada
E a liberdade conquistada abrir as asas sobre nós
Eu chamo
Chamo os batalhões de bóias frias
Eu peço a todas as Marias pra entrar no meu cordão
Chamo os afoxés e congadeiros
Todas as baianas dos terreiros e os bumbas do Maranhão
Clamo pela memória do passado e pelo sangue derramado
Meus companheiros de aflição
Chamo, eu chamo o povo brasileiro
Para mostrar ao mundo inteiro
O brilho do sol da manhã
A festa é nossa
Hoje é pra valer
Chegou a hora
Deixa a festa acontecer



Foto1: O bloco Cambalhota passando pelo Largo do Rosário
Foto2: Dá pra ver o compositor, como eu disse, de vermelho, viu?

sábado, 30 de janeiro de 2010

Do Verão, me dê o sol e a chuva!


Carlos Drummond de Andrade em ‘Caso pluvioso’ denominou Maria como a chuvosíssima criatura. Eu, Maria do Carmo, arrisco dizer que talvez seja destas criaturas de identidade pluvial de Drummond. Eu gosto de chuva de bom caráter, não só para dormir ou combinar com domingos de ressaca. Agrada-me a poesia da chuva, de vê-la faceira adentrando o vale pintando de branco minha cidade, irrigando com fartura as hortas e refrigerando a brisa. Quem não gosta de cheiro te terra molhada, bom sujeito não é.
As chuvas no tom máximo de mansidão para o verão, me confortam, embalam. Já as tempestades que ainda sabem como não causar o caos, me metem um medo infantil gostoso. Experimento uma sensação invasiva estranha diante daquela enorme massa de nuvens sinistramente escuras que roncam esbravejantes, galopantes, com iluminação própria de discoteca. Quando elas chegam preenchem a solidão do dia, rompendo o silêncio cruel de uma tarde. À noite promove melodiosa sinfonia de gotas tocando telhados e vidraças. Não as quero escalando com atrevimento as serras e desembestando trombas d’águas em nosso pacato Lenheiro, precipitando raivosas em cubos de gelo, com ventos assassinos de palmeiras imperiais e se transformando em desembaladas enchentes das goiabeiras.
Desejo chuvas que caem com graça cheias de encantamento, daquelas abençoadas por um São Pedro muito bem humorado. Chuvas assim sim todo fim de tarde! Vindas de todo canto, não só do ‘arauto pluvioso’ como Jota Dangelo definiu a Serra do Lenheiro. Chuvas amigas amenas, tempestades bem temperadas, chova linda nas esquinas da alma, ensinando a arte de ser intempestiva, de ser também aquosa e passageira, cessando quando convém para dar lugar à bonança!