quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O Compositor



O cenário não poderia ser outro, o Largo do Rosário, diante das janelas cerradas e sacadas solitárias do Solar dos Neves. A história é sobre uns versos de 25 anos atrás e o personagem é um senhor discreto em meio à pulsante multidão de foliões do bloco Unidos do Cambalhota. Ele olha de longe para aquela bateria, para os estandartes, para o povo em êxtase, para tudo, anônimo, sem demonstrar muitas expressões em seu rosto. Traja vermelho e branco, as cores do Salgueiro, do Copo Sujo, da Chácara, do seu Cordão Encarnado e do seu Qualquer Nome Serve. São tantos os sábados de carnaval já vividos, aquele teria um gosto especial? O que será que passa na cabeça deste apaixonado pelo carnaval de São João, deste inquieto idealista, deste talentoso compositor que em 1985 criou um samba com cadência mágica de lavar a alma, com um refrão poderoso e contagiante que vem vencendo o tempo na garganta de quem tem gosto pela folia na terrinha. Como ele se sente observando aquela multidão que explode uníssona cantando o que ele compôs, ecoando alegremente no Largo as palavras que um dia ele escreveu e ritmou com maestria? Mesmo nos anos mais difíceis da festa momesca são-joanense este pedaço do samba sobreviveu, ele tem a força da superação. Não existe carnaval em São João Del Rei sem que se ouça, por estas esquinas, em rodas de samba, em quase todos os blocos que se arrastam pelas ruas, este ‘bis’ incansável. Emociona o músico da bateria, faz o puxador impor a voz, faz sorrir quem só assiste, faz balançar quem não sabe sambar.
Que momento de inspiração fantástico teria sido aquele de rimar e enredar aquela emoção do carnaval de 1985, o carnaval da ‘Alvorada’, da Nova República, da democracia consolidada principalmente e com tanto orgulho pelo são-joanense Tancredo Neves? O que aconteceu no nosso país durante estas décadas corresponde à esperança que tomava seu coração, naquele ano após o regime militar? Caro poeta, seja qual for sua resposta lembre que não há nada mais nobre do que semear a fé no amanhã, é isso que todos cantam com tamanho entusiasmo e continuarão cantando através das gerações. Se por ventura tens ainda cárceres e porões ocultos dentro de ti, liberte-se deles, o sol amanhã anunciará um novo dia para o qual eu, e todo este povo transtornado de felicidade, conclamamos você!!!
O bloco vai passando, a multidão continua se agitando eufórica, pulando e batendo palmas, e ele está ali parado, braços cruzados para trás, sozinho, vivendo aquele momento de modo particular. Meu querido carnavalesco, sinta-se agraciado, abençoado, abraçado por esta massa, afinal a festa é sua, hoje e sempre é pra valer, quando chegada a hora, deixa a festa acontecer!!!

Eis a letra do samba do Cordão Encarnado 1985:
‘Alvorada’ (Jota Dangelo)

O sol nasceu,
Já raiou a madrugada
Um novo dia amanheceu
Pintando de luz as cores da alvorada
Canta, voando livre a passarada
Um hino cheio de esperança
Que acorda a criança que existe no fundo
De quem espera que este mundo
Um dia seja mais feliz, feliz...
Quando chegar a paz hoje sonhada
E a liberdade conquistada abrir as asas sobre nós
Eu chamo
Chamo os batalhões de bóias frias
Eu peço a todas as Marias pra entrar no meu cordão
Chamo os afoxés e congadeiros
Todas as baianas dos terreiros e os bumbas do Maranhão
Clamo pela memória do passado e pelo sangue derramado
Meus companheiros de aflição
Chamo, eu chamo o povo brasileiro
Para mostrar ao mundo inteiro
O brilho do sol da manhã
A festa é nossa
Hoje é pra valer
Chegou a hora
Deixa a festa acontecer



Foto1: O bloco Cambalhota passando pelo Largo do Rosário
Foto2: Dá pra ver o compositor, como eu disse, de vermelho, viu?