sábado, 10 de dezembro de 2011

Meio 'Clarisse'


Se uma ousada coragem me dominasse por completo... ah, que dia diferente seria! Levantaria da cama e esqueceria ainda dormindo a boa educação que a Dona Edna me deu e mandava logo às favas quem viesse com injustos desaforos pro meu lado. Vestiria calça, camiseta, um All Star. Não pentearia os cabelos, nem esconderia minhas olheiras com maquiagem. Falaria de futebol com muita propriedade e muitos palavrões com boca cheia, daqueles só proferidos dentro de estádio em final de campeonato. Fingiria nunca ter assimilado o rigoroso catecismo da Dona Célia Sena na paróquia de Nossa Senhora do Pilar e não me arrependeria de pecados tão bons de cometer, nem teria compaixão dos que atravancassem esse meu dia. E por suposto não esperaria benevolência divina.
Muito espirituosa e desinibida sentaria sozinha num boteco pé sujo, pediria uma cerveja e uma porção de fígado acebolado! Contaria casos extraordinários estilo ‘Floduardo Pinto Rosa’ (pai de Guimarães Rosa) para quem estivesse ao redor! Pularia carnaval sem o menor bom senso e não lembraria um instante sequer da possibilidade de uma ressaca física ou moral. Sem medo de qualquer conseqüência falaria tudo que eu sinto, pra quem eu amo e também pra quem desprezo. Traduziria minha raiva em verbetes chulos impronunciáveis a uma moça de boa família e em certos casos partiria também para murros bem acertados e chutes em traseiros merecidos, porque não? Iria decididamente despir de todo meu olhar acanhado, do véu de santinha e exibiria orgulhosa minha carcaça de escorpiana com veneno mortal.
Compraria brigas de pessoas queridas, participaria de passeatas com bandeiras ecológicas, cuspiria em políticos, e teria sempre boas respostas na ponta da língua. Vomitaria todos os sapos que engoli e ressuscitaria antigas discussões só pra ter o gostinho da frase final. Vingaria-me satisfatoriamente e com requintes de crueldade de todas as pessoas que um dia me fizeram sofrer. Desde a professora do primário que gritou comigo na aula de matemática, passando pelo fora daquele amor não-correspondido, até a amiga hipócrita que mexeu com afetos sagrados. Enfim vagaria perdida sem dar satisfações, sem estabelecer metas, sem regras, sem horários, seguindo só o coração, rumo ao futuro, até encontrar com ela, Clarisse, e obter resposta à pergunta: Valeu à pena?

P.S.: Este texto fi inspirado na crônica "Se eu fosse eu" do livro "Clarice na cabeceira" e antes de postá-lo aqui no blog percebi que havia escrito 'Clarisse' com dois 's'. Resolvi deixar assim propositalmente, como se minha Clarisse com dois 's' fosse diferente desta tão popular 'Clarice' de hoje. É como se eu fosse uma admiradora diferenciada, fosse mais íntima dela, um ato egoísta eu sei, mas essa minha 'Clarisse' é só minha! Hoje ela completaria 91 anos. Minha homenagem!

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Águas do Lenheiro



Quisera eu parar o tempo, estando no meio da ponte dos Suspiros, em noites de luar, e contemplar o brilho oscilante dos reflexos em tuas águas! Em harmonia e como testemunhas, os prédios da Câmara e Prefeitura, mais atrás as palmeiras do Centro Cultural do 11º-BI. Se por descuido lhe deixar cair uma lágrima de saudade, de tristeza ou de felicidade, favor conduzi-la ate o mar para que seja uma eterna prova das emoções vividas aqui. Apascenta alguma angustia minha com o burburinho de sua pequena queda ao declinar junto com a avenida, no coração de São João.
Corre córrego do Lenheiro, passa dia e noite sem pedir licença e sem cessar, desde a nascente na Serra ao desaguar em outras águas. Vedes os filhos desta terra de geração em geração, daqueles garimpeiros que de teu misterioso âmago fez surgir ouro, àqueles que inconfidente, presidente, ou simples gente somente sonharam.
Tento acompanhar-te no olhar a deslizar por este verdejante leito, placidamente, ou por vezes mau caráter, abundante e indignado quando lhe ordena os céus! Poluentes e detritos não te tirem a perenidade nem a saúde de teus peixes, nem a transparência de sua alma. Que terras clandestinas não te assoreiem as margens e percurso. Sejais sempre teimosa serpente enveredando por estas vertentes, buscando algum sentido. És encantadora praia ao nosso modo são-joanense de enxergar, inspiração das brumas de inverno e razão destas imponentes pontes de pedra com arcos romanos. Pra findar o Tijuco, te atravessa Rosário e pra reviver a lenda de quem assenta, Cadeia!
No teu destino, segues dividindo, segregando, rasgando, partindo ao meio minha cidade, és dela o sangue, a seiva, a vida que não ousou jamais descansar!
Ah, pouco me importa se és um moleque filete d'água e não há barcos charmosos a desfilar sobre tuas águas como no Sena, mesmo assim São João del Rei é, e sempre será, minha cidade luz!
É somente nas tuas águas Lenheiro, que mato minha sede de viver!


Foto 1: Luar e Córrego do Lenheiro por José Antônio de Àvila Sacramento
Foto 2: Ponte da Cadeia por Bárbara Diláscio

domingo, 31 de julho de 2011

Sony, a babá

A babá da minha filha Aninha é uma figura! O nome dela é Sony. Ela é super na dela e muito competente no que faz, disso não posso reclamar. Ela me deixa super segura, principalmente à noite. É que às vezes estamos cansadas e o sono é pesado, pode ser que a gente não escute o choro do bebê, mas com a Sony por perto fico tranqüila, qualquer choramingo da Aninha ela avisa. Ela está conosco desde o nascimento da nossa pequena.
Mas Sony é só babá mesmo, não ajuda em nenhuma outra tarefa de casa, nada. Passa o dia todo me olhando andar pra lá e pra cá, com aquele ar meio soberbo como se soubesse a hora exata em que minha filha irá chorar. O pior é que estranhamente ela sabe mesmo, mais que eu que sou mãe, isso me aborrece um pouco. Outra coisa que me irrita bastante na Sony é uns sons estranhos que ela faz, tipo ruído de avião, e também aquele som de interferência de celular. E quando estou ouvindo música? Ela cisma em cantar junto, sabe todas as letras e imita até os instrumentos, que raiva. Pode ser implicância minha, mas às vezes eu pego ela me olhando sinistramente com uma expressão assim como quem diz: ‘Aninha pode chorar a qualquer momento, mas não foi desta vez’!
Numa destas madrugadas em claro, de chororô sem fim da Aninha, ela estava comigo o tempo todo, me fez companhia na angustia de não saber o motivo do choro. Lá pelas três da manhã, depois de muito desespero, depois de rezar para todos os santos, e de tentar de tudo, da troca da fralda à chupeta de funchicória, quando eu quase caía exausta, Aninha finalmente adormeceu. Fui aliviada dormir e sabia que a Sony estaria atenta por mim, a pilha dela é forte, agüenta a noite toda! Mas antes que eu me deitasse e apagasse a luz do abajur ao lado da minha cama, ouvi a Aninha rindo, e a Sony sussurrar alguma coisa, num timbre de voz igualzinho ao da minha já falecida e querida mãe. Era como um resto de frase que poderia ter sido: ‘Durma bem meu amor’! Aquilo me deixou arrepiada! Olhei pra Sony admirada e ela muda, imóvel, como se não tivesse dito nada. Fui, com um certo medo, até o quarto da Aninha e ela estava no berço bem serena, linda, dormindo como um anjinho, tranquila como se estivesse mesmo sob o olhar protetor e carinhoso da avó. Bom, ainda bem que a Sony nunca mais resolveu imitar a voz da minha mãe, eu hein? Mas também pode ter sido coisa da minha cabeça, efeito de tamanho cansaço e estresse daquela noite.
Enfim sou grata à Sony, mesmo com suas esquisitices, ela é fiel, obstinada, séria e até hoje nunca me decepcionou, nunca ficou sem energia, está sempre alerta, seja dia ou seja noite! Só quem já precisou de uma babá para ajudar com os filhos entende o que é a Sony pra nós. O meu marido é que vive se confundindo e a chama de secretária eletrônica! É engraçado, mas Sony é babá!

sábado, 12 de março de 2011

Alma barroca, sagrada e profana

Sexta-feira depois do carnaval, é dia de trocar os cds dos compositores Jota Dangelo, Agostinho França, e outros tantos da nova geração de sambistas, pelos cds com os motetos, cânticos, matinas, laudes, e outras composições sacras dos são-joanenses como Padre José Maria Xavier e Maestro Ribeiro Bastos. É dia da primeira Via Sacra na rua, dia de contemplar a melodia dos dobres do sino dos Passos ao invés de tamborins, repeniques e tantãs de outrora. Eu sou são-joanense, adoro ser, minha alma é barroca, sagrada e profana!
Profano quer dizer tudo que não é sagrado, aquilo que é popular, da nossa gente, como as manifestações carnavalescas. Esta vertente tem raiz no fim do século XIX com os Ranchos ‘Boi Gordo’ e ‘Qualquer Nome Serve’, e mais tarde com as Escolas de Samba no século XX. Mas é chegado o tempo do sagrado, da outra vertente mais tradicional, vinda do século XVIII com a Lira Sanjoanense e a Orquestra Ribeiro Bastos. É a ocasião propícia do erudito, de se recolher contido e não mais de exibição, de desfrute, exaltação, hoje é dia também de Encomendação de Almas!

Fantasias e abadás que ontem nos vestiam dão lugar às opas roxas da Irmandade dos Passos. No lugar do bloco com seus coloridos estandartes, o cortejo da Via Sacra com sua cruz de madeira escura. As mãos que lançavam serpentinas, esguichavam espumas e jogavam confetes, agora carregam lanternas de prata e velas acesas. Aquele músico que comandava a eufórica bateria no sopro estridente do apito, passa a integrar a orquestra soprando passivamente as notas graves de seu trompete.
A imagem mágica da performance da bateria do ‘Unidos da Cambalhota’ nas escadarias da Matriz dá passagem para o desfile piedoso dos irmãos que irão refazer a via crucis de Jesus. No primeiro ato os sinos mudos nas torres apenas olham, e no segundo momento são protagonistas da devoção cristã (“pois o sineiro é o ritmista de São João!”). A paixão como sentimento que correu solta e inocentemente desavergonhada no coração dos foliões tem seu signo totalmente transformado, refletindo a dor, sofrimento e resignação pelo qual passou Nosso Senhor.

Eu sou são-joanense, do carnaval à quaresma, do samba à meditação, do enredo à oração, do ‘pular carnaval’ à contemplação, da alegria à ponderação, da razão ao coração!
Recolha-te folião, o tempo agora é de procissão, de terço na mão e não mais um copo de cerveja. Revele sua fé à luz de um lampião, abra sua alma, reconheça seus tropeços nestas ruas históricas, e peça perdão. Mas também perdoe porque todos nós às vezes sambamos na contramão e atravessamos no antigo refrão. Somos enfim todos barrocos, vivemos ainda debaixo destas telhas coloniais, cercados por paredes de adobe, mesmo que tenhamos deixado a terrinha, seguimos sagrados e profanos, são-joanenses!
Uma quaresma de reflexão, humildade, caridade, abstinência e oração para todos!
Foto 1: Bateria do bloco 'Unidos da Cambalhota' na escadaria da Matriz do Pilar, por Babi Diláscio
Foto 2: Um dos cortejos sacros da quaresma, por Adrianna Neves