terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A BUCHADA DE BODE E A PUXADA DE REDE- Uma pequena história de carnaval (para encerrar o assunto “carnaval” já que avançamos na quaresma!)


 

No início dos anos 90, quando eu tinha 20 e poucos anos, uma amiga me chamou para uma viajem de excursão com uma turma de professores. O destino era Fortaleza, no Ceará, íamos de ônibus, coisa de um dia e meio de viagem. Uma aventura com baixo custo, e uma grande empolgação de conhecer as praias daquele estado. A viagem que já parecia cansativa, ficou ainda mais quando o ônibus quebrou no início da Bahia, atrasando meio-dia de viagem. Para mim, uma jovem que só conhecia as praias de Piúma e Cabo Frio, tudo valia a pena! Ônibus concertado, seguimos viagem. A grande expectativa do caminho era atravessar o Rio São Francisco, tão famoso dos meus livros de geografia! Lembro de passar por uma grande ponte e ficar maravilhada com tamanha extensão de água, um tom de azul que parecia 

mesmo um mar. Logo depois de atravessar o famoso rio, paramos na cidade de Salgueiro, Pernambuco, ainda no Vale do São Francisco. A parada era muito simples, como todas aquelas cidadezinhas do interior por onde passávamos. Lanchamos e voltamos para o ônibus. Um dos passageiros, um militar aposentado muito simpático e brincalhão, voltou da parada com um copo descartável na mão, feliz da vida, saboreando uma iguaria local. ‘Vocês não fazem ideia do quanto isto está bom’ e ia mostrando o conteúdo do copo para os curiosos. Tratava-se de um caldo de tom avermelhado, grosso e gorduroso, de cheiro muito bom. ‘É buchada de bode e está uma delícia, vocês tinham que provar’ dizia ele sorvendo em colheradas o tal caldo. Salivei, mas não tive coragem de provar. 

Então foi isso: região do Rio Francisco = buchada de bode. Pegou a referência? Eu peguei! 

Ainda nos anos 90 comecei a acompanhar o bloco do Copo Sujo, levada pela Fabiana e a Lu, irmãs mais velhas das amigas. Era ainda um bloco pequeno, que descia do Bonfim do outro lado da igreja de São Francisco. Alguns anos depois meu irmão também começou a acompanhar o bloco, e me falou entusiasmado, dos sambas antigos que eram cantados durante o trajeto, eram da extinta Escola de Samba São-joanense “Qualquer Nome Serve” (QNS). Foi aí que tive o primeiro contato com o samba “Vale do São Francisco” de 1974. E de tanto ouvir aquele samba lindo, decorei a letra, só de ouvir! Depois ganhei o CD da QNS, “Um sonho em vermelho e branco” e segui ouvindo o samba do Rio São Francisco, mas sem encarte com a letra impressa para acompanhar, continuei cantando a letra como eu bem achava. Deste modo, no dia do bloco, eu estava com a letra na ponta da língua, e com algumas cervejinhas já ingeridas, me dependurava na corda perto dos ritmistas da bateria, me gabando de cantar o samba que nem todo mundo conhecia. Enchia a boca e cantava bem alto… “tem marujada, maculelê, tem “BUCHADA DE BODE”, tem cateretê” ahhh que alegria cantar este samba antigo!!! Nem tudo da letra eu sabia o significado, marujada, maculelê, cateretê… fazia uma ideia só. Mas a buchada de bode, ah essa eu conhecia da região do São Francisco, já tinha passado por lá e visto com meus olhos, lembrava bem até do cheiro! 

O tempo passou e todo ano no bloco do Copo Sujo lá estava eu, possuída pelo meu eu “Maria Bateria” (no bom sentido!) dependurada na corda, cantando orgulhosa,  junto aos ritmistas, a minha “buchada de bode”! Mas… mal sabia eu o que me esperava na estante lá de casa: num belo dia achei o livro “Subsídios para a História do Carnaval de São João del Rei“ de Jota Dangelo. Um livro incrível cheio de história de bastidores e informações dos gloriosos carnavais de 1950 a 2000. Eu estava me deliciando com as histórias e de deparei com a descrição do carnaval de 1974, o enredo do Vale do Rio São Francisco, onde o autor conta, dentre outros detalhes, que naquele ano a QNS não competiu, que ele, compositor do samba, não achava que a melodia tinha empolgado tanto a avenida durante o desfile, mas que achava interessante como o samba caiu no gosto dos são-joanenses ao longo dos anos. E aí vinha descrita também a letra do samba! Ah que legal, tinha a letra finalmente, e aí que eu fiquei sem chão!!! No lugar da buchada de bode, li que na verdade era “PUXADA DE REDE”! Que vexame! Claro, Cacá!!! “Tem marujada, maculelê, tem “puxada de rede”, tem cateretê”! Estamos falando do Vale de um grande rio, e trajeto deste rio, com suas tradições, até onde encontra o mar, onde tem peixe e onde várias famílias ribeirinhas e de aldeias de pescadores sobreviveram (e sobrevivem) da pesca, do ritual da puxada de rede, e não da buchada de bode! Mas é que eu, que adoro uma dobradinha, fiquei foi aguada para experimentar a buchada de bode que nunca me saiu da mente! Então a todos os ritmistas, e puxadores de samba do bloco Copo Sujo, que com certeza devem ter ouvido em algum ano a doída “buchada” no lugar da “puxada”, e também ao autor, nosso talentoso compositor Jota Dangelo, peço humildemente desculpas, desculpas de uma empolgada, mas atrapalhada foliã que cantou errado este samba, por tantos anos, descendo a ladeira da Ribeiro Bastos! Eu que só queria exaltar a alegria de cantar um samba nosso, tão bem cadenciado, belíssimo, de letra tão linda que até hoje (mesmo extinto o Copo Sujo), embala a multidão nas ruas históricas da nossa terrinha em dias de carnaval, com intérpretes do bloco Unidos da Cambalhota e da Chácara! 

Termino aqui a confissão do meu mico momesco, reforçando meu sincero pedido de perdão [risos]! 

Na sequência, a encantadora letra correta (!) do samba da QNS de 1974, “Vale do Rio São Francisco”. 


Vem como um risco de prata

Lá da serra Canastra

Vai em busca da mata

Rio São Francisco 

lendas, tradições do meu País 

barranqueiro, ê gaioleiro, 

canta o teu canto que diz: 

Ê, ê, ê - ê a, a

olha o rio correndo pro mar

Como vai menina, tá boa? 

Quede a sua trança, morena? 

Vê se prende nela a canoa, 

que é pra me prender

A sandália dela é de couro,

A Sinhá tem brinco de ouro, 

ela veste chita e Sá Dona

veste cetinê

La-la-ia-la-ai, la-la-ia-la-ia, la-la-ia-la-ia, la-ia-la-ia

Segue cortando a Bahia

olha o congado e o Boi Andá. 

Festa do Divino, 

repica o sino em comemoração, 

Alagoas, Sergipe, 

é onde o mar encontra o seu irmão, 

tem marujada, maculelê, 

tem puxada de rede, tem cateretê. 

Marinheiro sou, marinheiro,

vim buscando o mar, meu navio, 

vim subindo as águas do rio, 

vim só pra te ver, 

marinheiro sou, marinheiro,

Marinheiro sou, marinheiro, 

marinheiro sou, marinheiro 

marinheiro sou. 


📸: Capa do livro de Jota Dangelo