segunda-feira, 20 de março de 2023

O Gólgota são-joanense

 

É suplicando perdão que inicio esta crônica.  Se fui desrespeitosa, peço misericórdia para o meu eu lírico, mas me ative aos fatos somente, com uma dose de humor e exagero, práticas comuns ao gênero literário em questão. 

Bom, não sei o que deu em São Pedro para tamanho mau humor no último domingo, dia maior da Festa dos Passos. Talvez soubesse (sabia, claro!) que Dom Dirceu lembraria em sermão, afim de fazer metáforas didáticas, da sua covardia, sua ausência no Calvário, sua negação à Cristo por três vezes. Então achou de bom tom criar uma dramaticidade climática própria do dia encenado na paraliturgia do Encontro de Jesus e Maria no Largo das Mercês. Talvez baseando-se nos versos do Padre Cornaglioto, fez eclipsar a lua, rasgou de alto a baixo o véu do templo, fez confundir-se todos os elementos da natureza, vestiu o céu de luto, concentrou nuvens carregadas, acinzentadas e em tons roxeados, fez soprar uma repentina ventania, providenciou clarões, assombrosos raios, relâmpagos constantes e sinistros trovões! Prevendo a tempestade que se anunciava em contínuos sinais, os andores vinham cambaleantes em apressadíssimas procissões à caminho do Gólgota são-joanense. Senhor dos Passos já estava perto do hospital quando Senhora das Dores apontou na praça Barão de Itambé. Foi talvez o percurso recorde na história de mais 200 anos das imagens, feito desde suas respectivas igrejas de São Francisco e Carmo até o lugar do encontro. Será que alguém cronometrou? 

E o Bispo de Camaçari iniciou o sermão com o céu se alternando em negro e clarões, a chuva se precipitando aos poucos, tudo ao som de rompantes medonhos. Nem bem começou, já foi avisado para encerrar e continuar a explanação na igreja Matriz. Com toda serenidade peculiar aos bispos, Dom Dirceu sugeriu que todos seguissem em piedoso silêncio até a Catedral. Foi um tanto impossível cumprir o pedido do pastor, todos já estavam tomados pelo medo, quase pânico. E nem era receio de se molhar, era pavor dos trovões que não cessavam! Foi um salvem-se quem puder, as velas das tochas das irmandades se apagavam aos poucos, o trio carvão-turíbulo-naveta não incensavam mais nada, senhoras que levavam uma sombrinha na mão e um rosário na outra, não conseguiam se concentrar em uma ‘ave-maria’ sequer, os senhores tão distintos com seus ternos escuros e gravatas borboleta também não disfarçavam o temor, os músicos da banda Theodoro de Faria, se dispersaram, todos em desembestada carreira. Faço aqui uma menção honrosa para os músicos da tuba, afinal convenhamos, a tuba já é um instrumento desengonçado por natureza, imagine em marcha acelerada. Para quem assistia pela internet, quanto mais chovia mais suspense causava a transmissão, os pingos no microfone junto ao barulho dos raios e trovões, a câmera respingada e embaçada, a trepidação de quem filmava e também corria, criaram cenas de terror. Como não recordar da tempestade tenebrosa do filme Ben-Hur logo após o “Tudo está consumado”? 

Mas no fim tudo deu certo, e estavam todos, imaginária e fiéis, abrigados e envolvidos pelas suaves e reflexivas palavras de Dom Dirceu, que prosseguiu o sermão na mesma atmosfera de temperança particular, como se nada tivesse acontecido! E que sermão! Tanto do Calvário, quanto do Encontro, foi uma chuva, desta vez de bençãos! 

Até a Festa dos Passos de 2024! 


Foto: extraído de vídeo da Venerável Irmandade de Nosso Senhor dos Passos 

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A BUCHADA DE BODE E A PUXADA DE REDE- Uma pequena história de carnaval (para encerrar o assunto “carnaval” já que avançamos na quaresma!)


 

No início dos anos 90, quando eu tinha 20 e poucos anos, uma amiga me chamou para uma viajem de excursão com uma turma de professores. O destino era Fortaleza, no Ceará, íamos de ônibus, coisa de um dia e meio de viagem. Uma aventura com baixo custo, e uma grande empolgação de conhecer as praias daquele estado. A viagem que já parecia cansativa, ficou ainda mais quando o ônibus quebrou no início da Bahia, atrasando meio-dia de viagem. Para mim, uma jovem que só conhecia as praias de Piúma e Cabo Frio, tudo valia a pena! Ônibus concertado, seguimos viagem. A grande expectativa do caminho era atravessar o Rio São Francisco, tão famoso dos meus livros de geografia! Lembro de passar por uma grande ponte e ficar maravilhada com tamanha extensão de água, um tom de azul que parecia 

mesmo um mar. Logo depois de atravessar o famoso rio, paramos na cidade de Salgueiro, Pernambuco, ainda no Vale do São Francisco. A parada era muito simples, como todas aquelas cidadezinhas do interior por onde passávamos. Lanchamos e voltamos para o ônibus. Um dos passageiros, um militar aposentado muito simpático e brincalhão, voltou da parada com um copo descartável na mão, feliz da vida, saboreando uma iguaria local. ‘Vocês não fazem ideia do quanto isto está bom’ e ia mostrando o conteúdo do copo para os curiosos. Tratava-se de um caldo de tom avermelhado, grosso e gorduroso, de cheiro muito bom. ‘É buchada de bode e está uma delícia, vocês tinham que provar’ dizia ele sorvendo em colheradas o tal caldo. Salivei, mas não tive coragem de provar. 

Então foi isso: região do Rio Francisco = buchada de bode. Pegou a referência? Eu peguei! 

Ainda nos anos 90 comecei a acompanhar o bloco do Copo Sujo, levada pela Fabiana e a Lu, irmãs mais velhas das amigas. Era ainda um bloco pequeno, que descia do Bonfim do outro lado da igreja de São Francisco. Alguns anos depois meu irmão também começou a acompanhar o bloco, e me falou entusiasmado, dos sambas antigos que eram cantados durante o trajeto, eram da extinta Escola de Samba São-joanense “Qualquer Nome Serve” (QNS). Foi aí que tive o primeiro contato com o samba “Vale do São Francisco” de 1974. E de tanto ouvir aquele samba lindo, decorei a letra, só de ouvir! Depois ganhei o CD da QNS, “Um sonho em vermelho e branco” e segui ouvindo o samba do Rio São Francisco, mas sem encarte com a letra impressa para acompanhar, continuei cantando a letra como eu bem achava. Deste modo, no dia do bloco, eu estava com a letra na ponta da língua, e com algumas cervejinhas já ingeridas, me dependurava na corda perto dos ritmistas da bateria, me gabando de cantar o samba que nem todo mundo conhecia. Enchia a boca e cantava bem alto… “tem marujada, maculelê, tem “BUCHADA DE BODE”, tem cateretê” ahhh que alegria cantar este samba antigo!!! Nem tudo da letra eu sabia o significado, marujada, maculelê, cateretê… fazia uma ideia só. Mas a buchada de bode, ah essa eu conhecia da região do São Francisco, já tinha passado por lá e visto com meus olhos, lembrava bem até do cheiro! 

O tempo passou e todo ano no bloco do Copo Sujo lá estava eu, possuída pelo meu eu “Maria Bateria” (no bom sentido!) dependurada na corda, cantando orgulhosa,  junto aos ritmistas, a minha “buchada de bode”! Mas… mal sabia eu o que me esperava na estante lá de casa: num belo dia achei o livro “Subsídios para a História do Carnaval de São João del Rei“ de Jota Dangelo. Um livro incrível cheio de história de bastidores e informações dos gloriosos carnavais de 1950 a 2000. Eu estava me deliciando com as histórias e de deparei com a descrição do carnaval de 1974, o enredo do Vale do Rio São Francisco, onde o autor conta, dentre outros detalhes, que naquele ano a QNS não competiu, que ele, compositor do samba, não achava que a melodia tinha empolgado tanto a avenida durante o desfile, mas que achava interessante como o samba caiu no gosto dos são-joanenses ao longo dos anos. E aí vinha descrita também a letra do samba! Ah que legal, tinha a letra finalmente, e aí que eu fiquei sem chão!!! No lugar da buchada de bode, li que na verdade era “PUXADA DE REDE”! Que vexame! Claro, Cacá!!! “Tem marujada, maculelê, tem “puxada de rede”, tem cateretê”! Estamos falando do Vale de um grande rio, e trajeto deste rio, com suas tradições, até onde encontra o mar, onde tem peixe e onde várias famílias ribeirinhas e de aldeias de pescadores sobreviveram (e sobrevivem) da pesca, do ritual da puxada de rede, e não da buchada de bode! Mas é que eu, que adoro uma dobradinha, fiquei foi aguada para experimentar a buchada de bode que nunca me saiu da mente! Então a todos os ritmistas, e puxadores de samba do bloco Copo Sujo, que com certeza devem ter ouvido em algum ano a doída “buchada” no lugar da “puxada”, e também ao autor, nosso talentoso compositor Jota Dangelo, peço humildemente desculpas, desculpas de uma empolgada, mas atrapalhada foliã que cantou errado este samba, por tantos anos, descendo a ladeira da Ribeiro Bastos! Eu que só queria exaltar a alegria de cantar um samba nosso, tão bem cadenciado, belíssimo, de letra tão linda que até hoje (mesmo extinto o Copo Sujo), embala a multidão nas ruas históricas da nossa terrinha em dias de carnaval, com intérpretes do bloco Unidos da Cambalhota e da Chácara! 

Termino aqui a confissão do meu mico momesco, reforçando meu sincero pedido de perdão [risos]! 

Na sequência, a encantadora letra correta (!) do samba da QNS de 1974, “Vale do Rio São Francisco”. 


Vem como um risco de prata

Lá da serra Canastra

Vai em busca da mata

Rio São Francisco 

lendas, tradições do meu País 

barranqueiro, ê gaioleiro, 

canta o teu canto que diz: 

Ê, ê, ê - ê a, a

olha o rio correndo pro mar

Como vai menina, tá boa? 

Quede a sua trança, morena? 

Vê se prende nela a canoa, 

que é pra me prender

A sandália dela é de couro,

A Sinhá tem brinco de ouro, 

ela veste chita e Sá Dona

veste cetinê

La-la-ia-la-ai, la-la-ia-la-ia, la-la-ia-la-ia, la-ia-la-ia

Segue cortando a Bahia

olha o congado e o Boi Andá. 

Festa do Divino, 

repica o sino em comemoração, 

Alagoas, Sergipe, 

é onde o mar encontra o seu irmão, 

tem marujada, maculelê, 

tem puxada de rede, tem cateretê. 

Marinheiro sou, marinheiro,

vim buscando o mar, meu navio, 

vim subindo as águas do rio, 

vim só pra te ver, 

marinheiro sou, marinheiro,

Marinheiro sou, marinheiro, 

marinheiro sou, marinheiro 

marinheiro sou. 


📸: Capa do livro de Jota Dangelo

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Crônica de Julho nº3 (ou eu mudo?)

O relógio holandês da matriz fez soar doze pancadas! Meia-noite. Espere, espere, calma! Que pancadas são estas? Alguém percebeu que elas estão aceleradas? Preste atenção! Estão sim! Quem reajustou isto? Que agonia! Não se pode mudar o ritmo deste marcador do tempo são-joanense! Ou pode? Só porque é uma tradição? Só porque é como eu ouço desde pequena e não quero que mude nunca? Algumas coisas mudam...
O tempo não acelera como nas marteladas no sino da torre esquerda da Matriz, mas é implacável. Disse Caetano na canção 'Oração ao Tempo': Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo, (...) é um dos deuses mais lindos. Ele "é" contínuo, corretíssimo em ser contínuo!
E como atrelados ao ciclo do tempo nós estamos, fomos sentenciados às modificações físicas e também nos foi permitido a evolução intelectual, as etapas da adaptação, a nos moldarmos, nos foram dadas estas inconvenientes rugas e abomináveis fios brancos mas também outras possibilidades. O colágeno se despediu e partiu, o metabolismo diminui o ritmo, a gordura localizada se instalou de vez no abdômen, até no braço rente ao cotovelo. E o relógio da matriz continua a lembrar: O tempo é contado, contínuo, e agora acelerou suas pancadas!
Não tenho dúvidas que tens agora todas as incertezas, e isso, acredite, é sabedoria. Porque o tempo passado te fez amadurecer sem ainda cair podre ao chão. Você está quase no ponto de colher e ser apreciado. É o tal queijo gorgonzola de que fala a atriz e escritora Maitê Proença. Há de se aceitar, resignar-se, afinal algumas mudanças vieram pra ficar. Outras se reciclam e voltam!
John Lennon por exemplo, regressou à esquina do Kibom com seu violão cantando 'All you need is love'! Em outras proporções é verdade, mas ele está de volta! E o que dizer da Rua da Zona? Num passado não muito distante foi tão difamada, descriminada por ser a rua onde se localizava o baixo meretrício da cidade, pequenos bordéis e prostíbulos. O tempo passou, tudo se acabou e hoje está revisitada, reformulada, cheira a tinta fresca, tem polêmica, tem restaurante, Centro de referência da música, centro de artesanato, studios e até galeria de arte! Neste Inverno Cultural foi o grande ponto de encontro de artistas, turistas, gente bonita, pensante, interessante, gente nova que eu nunca vi, em movimentadas noites de boêmia cool! Isso que é levantar do chão de paralelepípedos, sacudir a poeira e dar a volta por cima com todos os lampiões, sinuosidades e casarios lindos e coloridos desta interessante rua da Cachaça!

No Largo vizinho, uma procissão com Nossa Senhora de roca ou de madeira, antigos registros em preto e branco ou sofisticadas imagens feitas com drone, revelam que a fé é a mesma, não importam as mudanças! Qual algodão-doce e pipoca, tem o mesmo sabor de sempre!
Sei não, mas parece que não faz mais tanto frio nestas noites de julho, acho que o vento perdeu as forças e parou de uivar. Algumas coisas estão diferentes, no meu e no seu coração. Mas continuamos indo aos shows de boas bandas no Inverno Cultural, com a alegre turma de amigos de sempre.
Se está para acontecer uma grande mudança, entre na dança, na roda, não adianta muito ser do contra, se manter inflexível. A vida é salpicada de açúcar (pra mudar docemente) ou sal (pra mudar com força) e assim vai até a mudança definitiva, aquela da passagem do material para o espiritual, tão amarga para quem fica. Enquanto ela não chega, para todo inesperado desvio de rota, tenha peito aberto, experimente os novos sabores, tenha olhos curiosos e mente esponja! De mala e cuia para outro país ou enchendo mais um caminhão e partindo para outra cidade, salve a 'mu-dança' e toda a renovação, desapego e movimento que ela traz!
As pancadas das horas do relógio da matriz sempre teremos! Sentidas de pertinho ou imaginadas nos ouvidos aguçados do são-joanense que está longe! Se elas estão mesmo aceleradas? Não sei, pode ser só impressão...  de que alguma coisa mudou!

Foto: Rua da Cachaça em noite de Inverno Cultural 2015, por Babi Diláscio

quarta-feira, 4 de março de 2015

50 tons, por mim


Vou mesmo escrever sobre o longa “50 tons de cinza”? Ousarei? Logo eu? A menina que cresceu no interior da virtuosa Minas Gerais, numa cidade colonial de antigos costumes preservados, numa rua ao lado da Catedral, sob o olhar vigilante do vigário mais tradicional da cidade, que teve a educação religiosa mais rígida nas salas de catecismo com a professora mais severa que já existiu? Logo eu, católica praticante, que vai a missa sempre, que carrega um terço na bolsa, que adora uma procissão, uma romaria, uma festa de santo padroeiro? Eu, toda introspectiva de olhar sério, que exibe na sala de casa um oratório onde não tem mais espaço pra nenhuma imagem de Nossa Senhora, que tem tatuado nas costas o escapulário de Nossa Senhora do Carmo (tatuado!), e que atende pelo mesmo nome da mãe de Jesus??? Tímida e que, como a protagonista, ruboriza a toa?... Vou escrever sim!
Adélia Prado tem um adorável questionamento: “De que modo vou abrir a janela, se não for doida? Como a fecharei, se não for santa?” Mas no caso do livro, e agora filme, acho que não se trata de ser doida (ou santa!) para ler, gostar, assistir e comentar com as amigas entre risinhos. É literatura e não adianta torcer o nariz, franzir a testa, porque literatura pra mim é arte, e arte é algo que te toca, te inquieta, te desconcerta, seja pela forma de atração ou repulsa! Se o livro ou o filme é raso, é profundo de alguma forma ao sensibilizar os milhões de leitores, expectadores e adoradores de Cristhian Grey e Anastasia Steele. E.L. James não é Adélia Prado, mas eu gostei do livro e do filme também! No entanto só vejo as pessoas comentando mais por causa das cenas de sexo, e dos estranhos métodos de prática que envolve o ato. É obvio que as tais cenas são intensas e ninguém deve ficar totalmente à vontade na poltrona do cinema, por outro lado vi mais que isso! No livro então muito mais, me chama a atenção uma narrativa muito bem feita e que ainda envolve outros dois narradores secundários, a ‘deusa interior’ e a ‘consciência’ que travam conflitos interessantes ao longo da trama. Mas talvez todo o lado apimentado da coisa chame mais atenção pelo apelo diferenciado, extremamente sedutor, que muito foge do casual, do habitual, é o irrecusável convite da fantasia, da dupla ‘cavalheirismo encantador’ e ‘brutalidade repugnante’, do que há de mais secreto e instintivo nos pensamentos de cada um. Não, não, não! As mocinhas que suspiram por Christian Grey não querem tapas, puxões ou surras (só as muito doidas!), elas querem o lado explícito, cordial e totalmente apaixonado do personagem. O resto, ah todo o resto você sabe bem, guarde em algum lugar mais escondidinho da sua memória, talvez possa ser útil para relembrar durante um ‘clímax’ da vida!
O que ficou mesmo do que eu li e assisti (e ainda espero assistir a sequência) é uma história de amor triste, das mais intensas e antigas, porque envolve exatamente dois dos ingredientes clássicos do gênero: duas pessoas que se amam muito, mas que por algum motivo seja ele atípico, estranho, racional, acaso ou trágico, não vão ficar juntas para sempre!

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Café fúnebre

Pode parecer meio mórbido, muitos não vão entender e podem me julgar, mas velório também é um lugar que dá fome. Desculpem-me todos os falecidos, os meus mais sinceros respeitos e saudades, espero que estejam todos gozando da paz celestial.
O costume é antigo, bem mineiro, mas com ocorrência também em outras regiões do país, e principalmente em áreas rurais: servir quitandas durante as noites em que se velava o morto, para dar sustança aos presentes que muitas vezes viam de longe. Tem até livro de receitas com o tema, ‘Os comes e bebes nos velórios das Gerais e outras histórias’ de Déa Rodrigues da Cunha Rocha (Auana Editora), traz 21 receitas e 18 histórias sobre a tal tradição.

E mesmo que os atuais velórios não se estendam mais à noite, o costume ainda persiste em pequenas cidades do interior. Tradicional como ela só, São João del Rei ainda guarda este hábito.
Após a confirmação do local do velório do ente querido, alguns familiares e amigos próximos, já providenciam duas garrafas de café, uma já adoçado e outra não, e para acompanhar roscas, pães, biscoitos, bolos, e toda sorte de produtos das nossas fartas e tradicionais padarias são-joanenses.
Eu comecei a reparar nesta tradição no triste dia que levou, inesperadamente, meu pai. O velório teve início no começo da noite e foi se estendendo madrugada adentro. De vez em quando alguém dizia ao pé do meu ouvido, ‘você precisa comer alguma coisa, vai lá na copa, tem café, biscoitos’... Eu achei aquilo estranho, mas fui lá e me servi de um forte café e comi algumas rosquinhas de polvilho, é o que recordo, e fiquei pensando qual das minhas bondosas tias teria tido esta preocupação de abastecer a copa, levado aquele café e aquelas rosquinhas.
Certa vez, num outro triste dia, no velório do pai de uma amiga muito querida, eu fiquei impressionada. A família era muito grande e com vários parentes fazendeiros de São Tiago, cidade próxima e conhecida como a ‘terra do biscoito’. E essa fama da cidade ficou evidente quando um dos parentes chegou num Gol daqueles antigos ainda quadrados, abriu o porta-malas e tirou de lá sacos enormes com todo tipo de biscoitos que se possa imaginar. Mais tarde, num dado momento, com a desculpa de ir ao toalete, fui até a copa conferir os tais biscoitos. E eram realmente deliciosos, diversos, abundantes, doces e salgados, uns mais durinhos, outros de desmanchar na boca!
Numa outra tarde muito dolorosa, velávamos minha mãe, no pequeno velório do Carmo, que não havia copa. Entre uma conversa e outra, sussurros e lágrimas, uma amiga sugeriu comprar alguma coisa pra comer na padaria do Carmo. Eu achava que nem estava com fome, mas quando ela voltou com um pacote de ‘enroladinho de presunto e queijo’, não resisti. E fomos aos poucos esvaziando o pacote, ao final restava apenas um, eu e esta minha amiga, nos entreolhamos numa pergunta calada: ‘quem fica com o último’? Fiz uma cara de filha que perdeu a mãe, e minha amiga não teve alternativa senão me oferecer aquele último salgadinho. Você já provou o enroladinho de presunto e queijo da padaria do Carmo? Não? Pois então prove, a vida é uma só! Este da padaria do Carmo, tem no recheio além do presento e do queijo, salsinha no lugar de orégano, que na minha opinião, faz toda a diferença.
Quando faleceu a mãe de uma outra amiga muito querida, eu estava fora de São João del Rei e cheguei às pressas no velório recém-reformado da Confraria de Nossa Senhora das Mercês, cansada da viagem e com fome. Após consolar a amiga, escutar as conversas de como tudo se deu, me informaram que na copa eu poderia fazer um lanche. Não aceitei prontamente, claro, mas mais tarde, com a desculpa do toalete... Foi nesta ocasião que provei uma inesquecível e perfeita combinação de um maravilhoso pão de queijo com mortadela! Era um pão de queijo muito macio, destes mais tradicionais, feito com legítimo polvilho azedo e pedações generosos de queijo bem branquinho. Dentro, finíssimas, quase transparentes, fatias de mortadela da boa, dessas que você pede ao funcionário da sessão de frios para cortar beeeeem fininha e ele te lança um olhar intolerante. A dupla casou muito bem, qual goiabada com queijo e olha que eu particularmente nem aprecio muito mortadela. Mais tarde ouvi alguém comentando que o delicioso pão de queijo foi feito pela senhora Nair Said, uma velha amiga da falecida, muito conhecida na cidade por sua bondade, educação, elegância e dom com as quitandas caseiras.
Recentemente subiu aos céus um anjo, a tia de uma amiga, que era como uma segunda mãe para ela. O velório que aconteceu no São Francisco, estava cheio de parentes e familiares, e já quase na hora do enterro, precisei ir ao toalete... Na copa, tomei um cafezinho bem forte e descobri que atualmente a própria funerária se encarrega da merendinha, o que deixa tudo um pouco sem graça. Mas me deparei com uma mesa razoável, um bolo simples, alguma outra coisa que não me lembro, e um prato com um tipo de salgadinho que me chamou a atenção, não sei bem se era uma rosquinha ou um salgadinho com algum tipo de recheio. Eu precisava conferir aquele, estiquei o braço e quando já estava prestes a pega-lo, alguém me puxou o braço. Era a irmã da falecida, mãe da minha amiga, ela estava preocupada com a filha que chegara de viagem e pediu que eu a chamasse para comer alguma coisa ali na copa. Atendendo ao seu pedido fui atrás da amiga que disse que já havia lanchado na estrada, e então eu fiquei sem graça de retornar à copa, fiquei só no cafezinho e na vontade daquele salgadinho-rosquinha que eu jamais saberei de fato o que era.
Quero deixar claro que não aguardo o próximo velório para conferir a copa, por favor, longe de mim. Gosto muito de levar meu abraço a quem carece nestas horas, de verdade, de coração, é um carinho que conforta como eu mesma já pude sentir nas ocasiões que faleceram meus pais. Desejo muita saúde a todos que me cercam!
Eu amo viver e não gosto de falar do dia em que eu deixarei este plano, mas me agradaria muito que no dia da minha despedida, os familiares escolhessem um velório com estrutura de copa, e que alguém se encarregasse de montar uma bela mesa ali, com bolos bem feitos, biscoitos de desmanchar na boca, broas macias, pão de queijo com fartos pedaços de queijo, salgadinhos tradicionais e um café muito cheiroso! Assim sendo eu não sei se vou conseguir me segurar e quem sabe eu não me levante do caixão para um ultimo deleite...


terça-feira, 21 de outubro de 2014

Eu, eleitor


Somos o resultado do nosso meio, das nossas vivências e também das nossas preferências. Nosso modo de relacionar é moldado assim também e contém deslizes, etapas de sensatez, momentos intempestivos e atitudes erradas e outras certas, momentos de reflexão intensa e que podem tanto acarretar em bons resultados ou verdadeiros desastres. Mas o pior ( ou necessário) fator de desequilíbrio é a paixão, e eu me rendo, confesso de joelhos como em um confessionário do século XVIII na sacristia de uma tradicionalíssima igreja barroca do interior de Minas: Sim! Sou movida por paixões! E nesta semana estou apaixonada... Pelas eleições para presidente em segundo turno! Estou achando tudo extraordinário, mas também pesado e tenho críticas à respeito principalmente nas redes sociais (uma outra paixão minha). Mas o saldo é positivo eu acho, porque mesmo aos trancos e barrancos estamos exercendo a cidadania, estamos fazendo o que deve fazer um eleitor em vésperas de votação e aos mais atuantes e engajados estamos em campanha pelo voto dos indecisos e ainda outros mais audaciosos em busca de reverter um voto adversário. Fantástico isto, mas... somente até o momento da luta no âmbito das ideologias, quando esgotados os argumentos racionais, vem ela, a paixão falar mais alto e é aí que muitos escorregam (até eu, sim!), nós viramos de costas, usamos de agressividade, alguns de palavreado baixo, e atacamos na esfera do pessoal com ofensas imponderadas, externando essência primitiva, expondo a inveja às vezes, aquelas guardadas à sete chaves da tolerância nas profundas gavetas das iniquidades.
Mas voltando a minha paixão, como boa apaixonada leio tudo sobre as eleições, cada opinião, e veja bem, leio com cuidado opiniões favoráveis ao meu candidato e desfavoráveis também, cada texto polêmico de blogueiro polêmico partidário e apartidário (que são poucos), acompanho pesquisas e suas interessantes margens de erro, fico nervosa em debates na TV. Leio também o que sai na imprensa e esta parte é das mais tristes porque ela deveria ser isenta, como aprendi na faculdade, mas ela anda pobre e medíocre. No entanto é na loucura das redes sociais onde mais mergulho, e absorvo tudo, as artes em design tosco, as mais primorosas e inteligentes àquelas onde erraram feio na informação, no checar dos dados, e foram compartilhadas automaticamente. Tem de tudo! Tem o 'preto no branco' pra conferir pronunciamentos ditos com verdade nos olhos que não passam de mentiras descaradas. E alto lá, tem 'preto no branco' favorável a cada candidato porque como já disse a isenção na imprensa passa longe. Fantástico! É uma corrida maluca onde a maioria já escolheu um dos pilotos, e os defende aguerridamente porque foram escolhidos de acordo com suas convicções que por sua vez foram construídas a partir das suas vivências, do meio em que você viveu e das suas preferências. Numa destas leituras de depoimentos próprios (aqueles que dou mais atenção porque vieram de um pouco de reflexão pessoal mesmo que contenha algum índice ou foto de compartilhamento), uma professora quase me conquistou, ela chamava a atenção para a distorção exagerada, para a manipulação a todo custo, mas no fim, veio o desastre, ela declarou seu voto e fui analisar o porquê. O porque da maioria da classe médica ter escolhido um candidato é a mesma coisa da maioria dos professores terem escolhido o outro. A mesma coisa no fundo! Escolhas baseadas na vivência, no meio, nas preferências, nos estudos que fizeram durante a vida, dos autores que se identificavam e leram sempre, é individual, é e sempre foi consciente ou não um voto egoísta. Consciente ou não! Nós assimilamos o que nos convém de acordo com nossa bagagem, de acordo com nosso nível de conhecimento e acesso a este conhecimento, uns com mais capacidade, outros com menos. Somos todos diferentes e iguais ao mesmo tempo. No fim a minha verdade é igual a sua verdade e embora sejam diferentes verdades não somos mentirosos. Acreditamos na nossa certeza do que elegemos ser o melhor para nós e ao país ao mesmo tempo, equação longa daquelas que o x foi obtido de acordo com os anos vividos. Esta é nossa maior influência, o resto é blábláblá, mimimi. Desde que consciente e jamais vendido, não existe voto errado. Mas existe voto certo! Qual é o certo? Daqui a quatro anos conversaremos novamente sobre o assunto, isso se eu estiver apaixonada! Ah claro, e depois de quatro anos ainda assim poderemos discordar...



quinta-feira, 11 de setembro de 2014

José&Maria


Dividindo o ar e rompendo as vertentes ela vem fumegando, dançando em trilhos, há exatos 133 anos!
Impávido e estático muro de rocha, ele espera silencioso desde sempre.
Ela anuncia sua passagem em bruma leve das paixões que vem dentro... E com o estridente som de seu apito talvez faça um chamado.
Maria: Velha louca e menina ativa, locomotiva!
À vapor, à amor é movida, de partida, serpenteando o vale, ritmada qual batida de coração.
José: Disciplinado, altivo, de quartzito, em tons negros e azuis, sublime elevação!
Uma grande concha ou talvez uma onda petrificada, no seu lugar ele a vê passar em curva!
Maria, uma composição, alguns vagões, emoções, acenos e tantas saudades. 
Vai e volta, até a estação, de Tiradentes, de São João del Rei.
Ele, quieto, admirando, zelando, compondo a paisagem da linha de ferro. Entre os meses de agosto e setembro, oferta a ela buquês em forma de majestosos ipês amarelos, assim é José.
Maria, Maria,
É um dom,
Uma certa magia... em brasa
Uma força que nos alerta... e carrega
Uma mulher que merece
Viver e amar
José, José
É uma moldura
Um certo guardião da vila
Uma fortaleza que nos abraça e abriga
Um ser que merece
Viver e desejar
Em alguns instantes convivem no mesmo cenário, ela fugaz, ele constante.
José e Maria, um par divino, e entre eles um leito de rio, de nome ‘das Mortes’, é testemunha.
Eu sei, todo são-joanense e tiradentino também, embora afastados,
eles se completam exatamente naquela curva porque assim quis a geografia!
Maria, Maria
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que rí
Quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta
José, José
Uma energia que nos alenta
De um gigante que chora (cachoeira)
Quando deve ser sólido
E não caminha, apenas enfeita
Maria é Fumaça!
José é São e também Serra!
Apenas isso e esse trem todo!


Foto1:Trilhos de Minas
Foto2:Revista Sagarana
Foto3:Luis Macedo

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Dona da lua


Eu já fui dona da lua! É isso mesmo, a lua era minha, em todas as fases, mais especificamente a lua cheia e todo seu brilho envolvente, todo seu misterioso poder. Era eu quem apontava e dizia, vem cá, olha que linda a lua esta noite! Eu era soberana diante daquele disco de prata e a exibia orgulhosa. Era meu código, meu trunfo, um elo, uma sempre testemunha, uma mensagem, uma admiração mútua, uma vã certeza, uma esperança, a realidade do sonho, um sentimento satélite, uma poesia, um olhar, uma busca, um segredo. E como assim ela não é mais minha?
Pois a vida expôs as escolhas cruéis, a sociedade fez sua pressão hipócrita e o tempo foi implacável como é. Eu não estava pronta para ter a propriedade da lua e talvez nem ela estivesse pronta para ser minha (minha?!). Ela se escondeu na nuvem da dúvida, durante a tempestade das vaidades. Ela foi encoberta pelas mangueiras do jardim da solidão, e eu ainda fechei a janela para o rastro do seu brilho não me alcançar, tamanho era o medo do incerto!
A lua pertence aos amantes, aos que seguem o caminho que dita o coração, aos corajosos de plantão! Hoje ela ilumina outro rosto, está sobre outra sintonia, mesmo que o céu seja o mesmo, que sua órbita esteja inalterada, a lua inspira outro sussurro, acelera outro coração, invade outra alma. Eu aceito a condição e fico com as estrelas (e estrelas não são migalhas!), a lua já não me pertence mais. Mas um dia foi minha, legalmente e naturalmente, e ela reinou nas minhas noites, ela vigiou meus sonhos para torná-los real, eu lembro bem e essas coisas não se esquece. Vai lua cheia, a revelar as entranhas, a saudar os telhados, a pratear o córrego, a varrer os campos, a despertar as paixões, que eu na condição de ex-proprietária, não posso sentir inveja dos que a possuem agora (e talvez pra sempre) no olhar, só desejo que continue a ser chama suave entre os abraços e faça muitos outros amantes conhecerem a plenitude dos bons momentos!

terça-feira, 18 de março de 2014

‘Os Caveiras’ e a Colombina– Um conto de carnaval

Segunda-feira de carnaval (de um ano de sua preferência).

A música ritmada por tambores inebriava os foliões que se lançavam à chuva de confetes sob uma noite pontilhada de estrelas e carregada de suspiros e brisas amenas. Em meio a multidão, uma Colombina vive sua fantasia e sorri naturalmente, é carnaval, o salão do clube está cheio de alegria. O par da menina, claro, é um altivo Pierrô.  Os dois vão dançando enlaçados ou sambando lado a lado, se cortejando e compondo aquela atmosfera. Uma história está para ser contada, para alguns se tornará uma lenda...


Eis que de repente, o som de muitos guizos desconcerta os olhares. Os sinos adornam a fantasia de um garoto que adentrou o baile, é o colorido Arlequim, vestido de desordem e liberdade. Ele tem o brilho das coisas verdadeiras, o amor lhe cerca e o banjo lhe completa. Os aguçados ouvidos da inveja rapidamente o ouviram e olhos medrosos o avistaram. Como num truque barato, malvado, assaltado pela insegurança, o ciumento Pierrô muda o ritmo, rodopia estupidamente seu par e com movimentos bruscos conduz a Colombina para fora do salão. Ela cai no chão...
Tolo Pierrô, foi o temor de que o sorriso do Arlequim pudesse iluminar o rosto de sua amada ou talvez (quem um dia irá saber) de que o coração da Colombina redescobrisse a contagiante presença do Arlequim. Mas o que se deu foi que a menina não entendeu a insensatez, porque as coisas quando toscas não tem razão. Estava tão feliz, apenas se deixava levar pela magia do carnaval, o que a mais ela fez? Se perguntava com os olhinhos perdidos.
Pierrô, palhaço triste, viu a decepção no rosto pálido da Colombina e não aguentou fita-la mais, deixou-a ali no chão e saiu correndo com sua fantasia de covardia.
Sem graça, a Colombina se ergueu com a ajuda de outros, tinha algumas dores, mas não sabia onde, estava machucada, mas não havia feridas à mostra. E agora? Como voltar à dança? Melhor descer as escadas da realidade e deixar o salão. Nem sua fantasia esconderia sua desilusão.
 Ao chegar à rua ela ouviu uma marcha sombria e conhecida, estava prestes a desfilar na avenida um bloco típico. O cortejo era o qual na sua infância ela mais gostava, embora tivesse enorme pavor! Era um bloco, muito antigo, tradicionalíssimo na cidade, onde os foliões se fantasiavam de criaturas da noite, bizarras, mal assombradas, vivos-mortos, vampiros asquerosos, fantasmas medonhos, caveiras horrendas, almas penadas que talvez desfilassem desde sempre, como convém às coisas eternas.


A Colombina, exímia dançarina que dança conforme a música, sem pensar e apenas sentindo, foi assim se juntar àquela procissão de horrores. Desfilando suavemente sua dor no meio do bloco, foi desenhando sua coreografia, deixando cair sua mãozinha e outrora a levantando ao som mais agudo de um clarinete (o/), como se fosse um balé de uma pequena bailarina de antigas caixinhas de música.
E assim com coragem e leveza, integrada estranhamente ao bloco, desceu a avenida jurando aprender a seguir sozinha, pois passista não significa passiva! O desfile na avenida foi sua viagem, sua catarse, um legítimo enterro daquilo que ela não desejava mais, daquelas sensações mesquinhas, das ofensas, da solidão maquiada. Eram todas aquelas caveiras...


O Pierrô está chorando pelo amor da Colombina, no meio da multidão, na estrada da vida, e sua lágrima pendente se eternizou tal como tatuagem embaixo do olho esquerdo.

O Arlequim? Se vai ou não vai um dia tomar a cintura de Colombina numa sexta-feira, descendo a ladeira, não importa agora. Isso é assunto para outros carnavais, caros foliões! Já adentramos aos ritos quaresmais...

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Habitantes do centro histórico


Ah esses seres únicos do centro histórico! Indivíduos mansos, incomuns, de hábitos singulares, seculares e severos consigo mesmos. Vivem rodeados de sobrados, sombras, gradios portugueses rebuscados, beiras, seveiras e sob telhados coloniais. São animais que praticam a amizade, a temperança, a bondade e a solidariedade por longos 300 anos. Os vejo caminhando sem pressa pelas ruas de tortos paralelepípedos, nas esquinas, nos becos e nas alcovas das suas casas. Habitam também torres, guardam e zelam pelas capelas dos Passos. Se refugiam em bando nas igrejas para reza de terços, missas, novenas solenes e Te Deum Laudamos (Te Deum então, adoram! Com muito ajoelha-levanta) Não que sejam, ou querem ser santos, não se trata disso, porque eles carregam sim seus pecados, seus passados e espiam uns aos outros através de janelas baixas. Às 15h das sextas-feiras, sob o dobre dos sinos dos Passos, ascendem incensos no interior de seus estabelecimentos comerciais. Alimentam-se de frangos ensopados, rapadura, pão de queijo, queijo, doces em compota com queijo, doce de leite com queijo, goiabada com queijo, bolinho de feijão, amêndoas de cartuchos, e de toda a sorte de quitandas de padarias antigas. Só tomam café Tamandaré ou Soberano, só cozinham arroz soltinho se for Albarusca e só varrem a casa com vassoura piaçava Rossi! Estranhos... Que não se tente enjaula-los em belas mansões de condomínios no Alphaville ou em impessoais apartamentos do alto Leblon! Esses seres não serão felizes, apenas sobreviverão, eles precisam de horta para cultivar rosmaninho e ora pro nobis, precisam sentir o cheiro do adobe, da madeira de demolição, do ferro fundido e da Dama da Noite. Nas procissões, orgulham-se de vestir uma opa de irmandade e carregar uma lanterna, curvar-se diante de andores e lhes jogar pétalas de rosas. Querem apreciar os fogos iluminarem o céu e ver passar a banda no final. Que ninguém os julguem como segregadores, mas é que quem nasceu no centro histórico de São João del Rei nos arredores dos Largos das Mercês, Carmo, Rosário, da Cruz e do São Francisco, tem raízes mais profundas, proporcionais à altura de palmeiras imperiais, possuem ouvidos afinados por badaladas de bronze e violinos de bicentenárias orquestras. A vida não lhes é diferente, é hora difícil e hora leve, mas a fé é tradição e esperança do amanhã assim como uma peculiar alegria simples!