segunda-feira, 20 de março de 2023

O Gólgota são-joanense

 

É suplicando perdão que inicio esta crônica.  Se fui desrespeitosa, peço misericórdia para o meu eu lírico, mas me ative aos fatos somente, com uma dose de humor e exagero, práticas comuns ao gênero literário em questão. 

Bom, não sei o que deu em São Pedro para tamanho mau humor no último domingo, dia maior da Festa dos Passos. Talvez soubesse (sabia, claro!) que Dom Dirceu lembraria em sermão, afim de fazer metáforas didáticas, da sua covardia, sua ausência no Calvário, sua negação à Cristo por três vezes. Então achou de bom tom criar uma dramaticidade climática própria do dia encenado na paraliturgia do Encontro de Jesus e Maria no Largo das Mercês. Talvez baseando-se nos versos do Padre Cornaglioto, fez eclipsar a lua, rasgou de alto a baixo o véu do templo, fez confundir-se todos os elementos da natureza, vestiu o céu de luto, concentrou nuvens carregadas, acinzentadas e em tons roxeados, fez soprar uma repentina ventania, providenciou clarões, assombrosos raios, relâmpagos constantes e sinistros trovões! Prevendo a tempestade que se anunciava em contínuos sinais, os andores vinham cambaleantes em apressadíssimas procissões à caminho do Gólgota são-joanense. Senhor dos Passos já estava perto do hospital quando Senhora das Dores apontou na praça Barão de Itambé. Foi talvez o percurso recorde na história de mais 200 anos das imagens, feito desde suas respectivas igrejas de São Francisco e Carmo até o lugar do encontro. Será que alguém cronometrou? 

E o Bispo de Camaçari iniciou o sermão com o céu se alternando em negro e clarões, a chuva se precipitando aos poucos, tudo ao som de rompantes medonhos. Nem bem começou, já foi avisado para encerrar e continuar a explanação na igreja Matriz. Com toda serenidade peculiar aos bispos, Dom Dirceu sugeriu que todos seguissem em piedoso silêncio até a Catedral. Foi um tanto impossível cumprir o pedido do pastor, todos já estavam tomados pelo medo, quase pânico. E nem era receio de se molhar, era pavor dos trovões que não cessavam! Foi um salvem-se quem puder, as velas das tochas das irmandades se apagavam aos poucos, o trio carvão-turíbulo-naveta não incensavam mais nada, senhoras que levavam uma sombrinha na mão e um rosário na outra, não conseguiam se concentrar em uma ‘ave-maria’ sequer, os senhores tão distintos com seus ternos escuros e gravatas borboleta também não disfarçavam o temor, os músicos da banda Theodoro de Faria, se dispersaram, todos em desembestada carreira. Faço aqui uma menção honrosa para os músicos da tuba, afinal convenhamos, a tuba já é um instrumento desengonçado por natureza, imagine em marcha acelerada. Para quem assistia pela internet, quanto mais chovia mais suspense causava a transmissão, os pingos no microfone junto ao barulho dos raios e trovões, a câmera respingada e embaçada, a trepidação de quem filmava e também corria, criaram cenas de terror. Como não recordar da tempestade tenebrosa do filme Ben-Hur logo após o “Tudo está consumado”? 

Mas no fim tudo deu certo, e estavam todos, imaginária e fiéis, abrigados e envolvidos pelas suaves e reflexivas palavras de Dom Dirceu, que prosseguiu o sermão na mesma atmosfera de temperança particular, como se nada tivesse acontecido! E que sermão! Tanto do Calvário, quanto do Encontro, foi uma chuva, desta vez de bençãos! 

Até a Festa dos Passos de 2024! 


Foto: extraído de vídeo da Venerável Irmandade de Nosso Senhor dos Passos