segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Sandra, Sandrão, Drão

O Gilberto tava meio mal de grana com poucos shows agendados, a censura do regime militar ainda na sua cola, e o pior, estava aborrecido pois sua mulher, Sandra, queria a separação. Enfim, o momento era difícil, mas não era de se recusar convites ou trabalhos por mais estranhos e longe que parecessem. E depois de tanto excursionar pelo exterior e ter um programa especial só dele na TV Globo, Gil foi convidado para ser jurado de um programa de auditório numa rádio no interior de Minas. Era o início dos anos 80, havia aos domingos um programa de calouros muito popular no auditório da Rádio São João, em São João Del Rei. O então diretor da rádio (não lembro o nome e não quis inventar nenhum!) numa visita à capital mineira encontrou por acaso, na Cantina do Lucas, um grande amigo e escritor. Este por sua vez estava com um ilustre amigo, o cantor baiano Gilberto Gil e assim se deu a coisa, o diretor que desejava promover o programa da rádio se entusiasmou, o convite foi feito e o cantor aceitou, aguçado pela curiosidade de conhecer a histórica cidade. Foi oferecido carro com motorista no dia seguinte, mas Gil dispensou e disse que não fazia questão da mordomia, foi logo naquele mesmo dia de ônibus numa linha intermunicipal normal. Já no terminal rodoviário, que ironia, a empresa da linha 'Belo Horizonte-São João del Rei' chamava-se ‘Viação Sandra’. Entrou no ônibus que não tinha luxo algum e como sempre fazia, logo cumprimentou o motorista: -E aí baiano? O motorista replicou ainda não reconhecendo o afamado artista: -Bom dia amigo, mas eu não sou baiano não... -Mas é que eu sou, e chamo todo mundo de baiano também, não se zangue não... -disse o cantor com sotaque carregado. O trocador se intrometeu na conversa e falou ao motorista sorrindo: -Mas até que você tem cara de baiano mesmo... Todos riram e foi este o apelido com que o motorista ficou conhecido dali em diante. Curva do Sabão, viaduto das Almas, à frente de Gil num encosto de cabeça, a palavra “SANDRA” em letras verdes. Ele ficava lendo sem parar aquele nome e relembrando toda sua vida com a mulher, o período do exílio em Londres, o nascimento dos três filhos e todas as dificuldades, agruras e alegrias que dividiram. Na parada à beira da BR040, na localidade de Murtinho, comeu meio sem vontade um pastel de carne. Achou graça do mineiro ‘Maranhão’, nome do lugarejo próximo à Congonhas do Campo, onde Sandra estacionou para descer um passageiro. Deliciou-se com a simplicidade da cidadezinha de São Brás do Suiaçuí e ficou imaginando que Drummond teria escrito o pequeno poema‘cidadezinha qualquer’ inspirado naquelas ruas de São Brás do Suaçuí... Suaçuí... Suaçuí. “Que gostoso de pronunciar” pensou. Sandra prosseguiu e parou novamente, agora na Terra do Fogo, onde embarcou uma velhinha de lenço na cabeça, carregando alguns sacos de sementes, uma sacola e uma trouxa de pano. Um dos sacos era de feijão e este já ficou na cabine do motorista (o Baiano!) que lhe pagou por ele. Depois que se acomodou, lançou da sacola um queijo embrulhado em saco plástico e saiu oferecendo aos passageiros: -Qué compra quêjo? Tem fresquim e curadim -foi repetindo a senhorinha ao longo do corredor. Gil logo se interessou, queria levar um queijo de minas! Mas quis saber a diferença: - Como é curadim e como é o fresquim? - Indagou à senhora. -O fresquim ainda mina água e o curadim já tá mais firmim. Tudo produzido na minha roça mesmo - explicou sorridente. Veio Desterro de Entre Rios, Sandra freou. Como seria um desterro no meio de rios, que emaranhado de caminhos eram esses? Gil pensou. E logo depois Sandra fez parada novamente, desta vez em Entre Rios de Minas, sem desterro e berço da raça Campolina foi o que Gil leu numa placa pequena pregada numa cerca branca. Já outras placas enormes estariam por vir nas diversas curvas que se seguiram, elas surgiam assustando e anunciando com letras gigantes ‘o legítimo rocambole’, ‘o famoso rocambole’ de Lagoa Dourada. O cantor lembrou logo de sua filha Preta, louca por doces. Será que Sandra iria parar naquela terra do bolo com doce de leite em forma de caracol? Claro, Sandra pára em todo lugar, lugarejo, vilarejo, ponto, porta, porteira, clareira, fogueira, bananeira. Basta balançar o braço, erguer a mão e Sandra pára... Ás vezes Gil esperava que ela fosse parar até quando um galho de árvore balançasse na beira da estrada! Mas ele não se arrependeu um instante se quer de não ter aceitado a carona do diretor, ele estava apreciando aquela um tanto demorada viagem, as pitorescas paisagens daquelas bandas, aquela gente simples entrando e saindo, e “SANDRA” sempre segurando seu olhar o fazendo matutar, reviver o passado e imaginar o futuro. Aqueles ares fizeram muito bem a Gil. Ele compreendeu que não poderia mais segurar aquele enlace com Sandra - Drão como ele carinhosamente a chamava - e resolvera aceitar a separação sem mágoas. Estava inspirado, renovado e tinha pronta em suas mãos, letra e melodia, a canção que fez naquela viagem e que seria um de seus maiores sucessos! Já o programa na rádio... Bem, Gil apesar de achar a cidade encantadora, só pensava na viagem de volta quando iria comprar para Preta Gil alguns três ou quatro rocamboles, também queijo ‘curadim’ e outro ‘fresquim’. Queria olhar de cabeça erguida para “SANDRA” na poltrona da frente, consciente de que tudo passa entre uma parada e outras tantas e o que foi vivido permanece nos corações. A vida segue seu rumo torto e às vezes reto e sereno. A estrada escura, a caminhada dura ainda permanece para os são-joanenses que volta e meia, vão à capital, na companhia de Sandra ou não. A paisagem dos campos das vertentes como vista, um açucarado legítimo bolo-rolo numa suposta dourada lagoa, uma passada sem graça e longe dos profetas em Congonhas, um suspiro que escorrega e se perde na curva do Sabão, uma saudade que cai vitimada do viaduto das Almas. Isso tudo, a não ser, que agora você pegue o avião. Saudosista que sou, ainda prefiro ir de BH à São João, e vice-versa sem pressa, pensando de leve sobre a vida, olhando tudo da janela de Sandrão!!!

Fim da história. Entrou por uma porta e saiu por outra, quem quiser que conte outra!

17 comentários:

  1. Amiga Kaká Parabéns!!Adorei o conto ,aliás sou sua fã né!voçê tem um enorme talento,é um Dom que Deus te deu ,que voçê continua sempre a escrever palavras que faz muito bem para todos que lêem,Felicidades e muito sucesso para voçê
    bjs

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  2. Fascinante o conto, trabalha bem com as palavras, cativa, prende a atenção, desperta o interesse.
    Fantastico
    Abraços
    Ique

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  3. Ai, deu uma saudade...
    Amei o texto, como sempre, tudo tão caprichadinho, cheio de detalhes... e a gente vai visualizando cada cena!
    Apaixonada pelo seu blog!!
    Amo-te mto, amiga!!
    Ainda vou voltar a pegar o "Sandrão" verde e amarelo!!
    Bjinhos

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  4. Valeu Bizinha! Tb sou fã das 'escuderias pensantes'! Bjos

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  5. Sandrão também me lembra KK, será por conta das infinitas vezes que fomos juntas saculejando, falando, pensando??? Mas agora creio que não poderemos mais contar com o Baiano, ou ele ainda está na ativa?
    Bjo, adorei.
    JU

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  6. Amei KK!!!!! Parabéns, totalmente envolvente!
    bjos

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  7. Não Ju... o Baiano está aposentado. Outro dia o vi perto da rodoviária, sem o uniforme, tão estranho ver ele assim...Me deu vontade de falar com ele, mas sabe como sou bocó né? Ah Ju, viajar na sua companhia era bom demais, a gente ia numa felicidade pra terrinha né? Bjos, Saudades
    Obrigada e bjos pra vc tb Rê!!!

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  8. Adorei o novo estilo amiga! Dentre as coisas lindas que vc escreve, talvez esse tenha sido o mais criativo dos textos... Amei de verdade! Bjos com saudades de vc e do Sandrão!

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  9. Oooo...gracinha Babi! Obrigada, eu fico toda derretida com os elogios das minhas amigas queridas! Bjos

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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  11. Kaka mais uma vez viajei no seu texto, talvez com "Sandra", so que com uma unica diferen;a depois de 3 anos (pois ja havia lido em 2009) hoje senti o cora;ao pulsar mais forte, pelas paradas no caminho, ou pela forma doce que Gil observou as belezas de Minas na BR 040... Enfim entendi melhor algumas indaga;oes que estou vivendo, e com isso so tenho a agradecer voce mais uma vez, obrigada por nos presentear com seus fabulosos textos que por vezes nos ensina a olhar a vida mais serenamente e entender os propositos do nosso caminho!!! Um beijo pra voce.
    Ops. Confesso que o rocambole de doce de leite me deixou com agua na boca...Coisas de Minas!

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  12. Respostas
    1. É um conto! Mas quem quiser acreditar deixo à vontade...

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  13. Este comentário foi removido pelo autor.

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