segunda-feira, 21 de outubro de 2024

 A Reforma

Indissociável. A Matriz do Pilar é um bem nosso, rica herança compartilhada, parte da gente, um laço do povo são-joanense desde outros séculos. Uma cândida senhora, acolhedora, tão boa conselheira, generosa em abrigar, mas de olhar austero. Tão bonita com nuances de ouro envelhecido reluzentes ao brilho suave emanado dos lustres de cristal, elegante com seus brocados pendentes das tribunas e a renda sofisticada de seus lambrequins. Cada um que reza ali e suplica a graça com fervor, leva para dentro de si um pouco daqueles altares, cada criança que vai à missa é um pouco querubim esculpido em cantinhos e arcos. A cada hino cantado, ou sermão proferido no púlpito, faz vagar o olhar e comtemplar uma arte bem talhada, a coluna retorcida, um girassol, um pelicano, uma folha de acanto, um atlante, a expressão do olhar terno de um santo. Conhecemos de cor cada detalhe da pintura do teto, e cada desenho do ladrilho do seu chão, o latim de cada novena e ofício, as antífonas solenes, os hinos, as mais singelas músicas cantadas somente com o órgão. As nossas faltas e fraquezas aceitamos confessar ao cair de joelhos no genuflexório de jacarandá. Nos perfumamos dos seus incensos com amoras da misericórdia divina. Os altares completamente floridos dos dias solenes são nosso jardim particular, a festa da padroeira é como celebração íntima cheia de alegrias, foguetes, alvoradas com bandas e convivas especiais. Enfim, somos todos da Legião de Maria, Coroinhas de Dom Bosco afeiçoados à piedade de Padre José Teixeira, somos todos do Apostolado da Oração, anjinhos de maio em coroação, irmãos da Irmandade de São Miguel e Almas às segundas, da Confraria da Boa Morte às quartas, do Santíssimo Sacramento às quintas, e da Irmandade dos Passos às sextas. Somos todos tenores da Lira, maestros da Ribeiros Bastos, somos todos exímios sineiros e expectadores atentos ao soar do quarto de hora. Sim, a Matriz é demarcação do tempo, ritualística o ano inteiro, com tríduo, novena, terço, missa solene, procissão e rasoura. E tudo acaba com Te Deum Laudamus ao gosto dos fiéis que não arredam o pé antes da benção final. 

Toda essa sensação é ainda mais vivida para quem é vizinho, mora perto, do lado. 

A partir de hoje, a Matriz fecha suas portas físicas (porque casa de Deus não possui trancas) para mais uma indispensável reforma de bens arquitetônicos e artísticos, com investimento de milhões. E como aconteceu na reforma dos anos 90 (eu estava lá!), as celebrações litúrgicas são transferidas para as igrejas irmãs, Carmo, Rosário e Mercês e capela do Divino. 

Reformas são necessárias. Nos anos 90 a reforma deu fim ao medonho bando de morcegos que habitava o complexo do telhado na altura da grande nave, e que tirava o sono do Monsenhor Paiva. Era um filme de terror, no fim da tarde, ao toque do Angelus, começava a revoada, saíam todos juntos das telhas coloniais numa cena apavorante (tenho nítida lembrança daquele voo sob a minha cabeça!). Saíam para se alimentar e voltavam dispersos durante a madrugada. Se reproduziam, a colônia crescia, danificando as telhas, carcomendo as madeiras do forro, assombrando com seus ruídos. Ao fim da reforma eles não estavam mais lá e o teto estava recuperado. 

Nesta mesma reforma, mestre Carlos Magno armou seu ateliê nos corredores seguintes ao Tabernáculo, deitou as tabuas do forro da Capela do Santíssimo em longos cavales e, como mágica, fez ressurgir a delicada pintura de Joaquim José da Natividade (fui testemunha, da minha varanda!). Um resgate de imenso valor e beleza! O sistema de iluminação também foi modernizado, outra preocupação do pároco. 

A reforma que se inicia também tem sua importância, é bem-vinda, é paliativo contra a ação do tempo neste sagrado templo onde o são-joanense professa sua confiança em Deus. A restauração vai ajudar a atravessar os séculos que estão por vir porque outras gerações que carregam os mesmos sobrenomes de hoje, e de ontem, merecem continuar a devoção, unidos em comunidade, debaixo de toda esta exemplar arte do barroco e rococó, sob a vigilância destas torres que devem continuar como sentinelas e referência em comunicação, com signos muito próprios de dobres e repiques. 

Senhores restauradores, tenham amor ao manipular cada pedacinho deste lugar, tenham cuidado ao carregar cada castiçal, cada antigo crucifixo destes altares, cada salva de prata, cada conjunto processional. Nunca é demais solicitar o devido esmero ao recompor cada madeira, cada pintura, cada minucioso entalhe. Nossa gente conhece cada voluta, cada tom de cor, sabe de tudo que tem aí, deste uma alfaia bordada à cenográfica cabeça de São João Batista que figura a procissão do enterro na Sexta-feira Santa. Tudo é parte do nosso jeito de materializar o exercício da fé, é coisa nossa de 3 séculos, de geração em geração daqueles que tem o mesmo sangue. Com respeito e humildade, que fique claro para os senhores o nosso entendimento pela urgência da intervenção, da nossa atenção, da nossa gratidão, e para estar cientes em que tipo de crença estão bulindo e cuidando. 

Que Nossa Senhora do Pilar abençoe, guie os trabalhos de cada profissional da equipe e interceda junto a Deus para o bom êxito das obras. Amém. Sentiremos saudades, mas estamos resignados porque o intervalo é processo necessário. A separação é só material, espiritualmente somos indissociáveis da nossa Matriz do Pilar.


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